terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A Guardiã, Parte II







No passado,



“Houve um dia onde as máquinas ficaram tão odiosas e tão malditas que olharam para nós de cima com escárnio puxando a luz da lua contra a nossa existência. Foi nesse dia que realmente compreendeste que o teu mundo chegou ao fim. A era do homem acabou e agora só existe o Império que segura a ténue barreira que sustenta a tua alma em não se transformar numa lata…. Num pedaço de metal.”

“Eu compreendo. Eu vejo. Eu sinto.” – As primeiras palavras que a caçadora disse no seu primeiro dia como verdadeira guardiã em plena praça da libertação no planeta terra superior. Todos os chefes e comandantes mais importantes de segunda categoria assistiam à bênção dos recrutas no topo das suas varandas. – “Eu compreendo, meu senhor.” – Enquanto fechava os olhos e rogava pela mão velha e forte do seu senhor no ombro.

“Diz-me guardiã, estás pronta para limpar este mundo, o próximo e o próprio universo de todo o lixo?” – Este velho de cara branca sem cabelo ou barba vestido apenas com um manto vermelho com inscrições que falavam de outros tempos era um dos treze conselheiros que governavam sobre a palavra do Império e era ele que realizava a benza. Não havia maior honra pois era o dia onde recrutas de caçadores e assassinos se transformavam naquilo que desejaram a vida toda, em guardiões.

“O meu corpo é o instrumento da vontade do Império meu senhor.” – Pertencia ao Império agora. Já não possuía nome e o seu futuro ia ser viajar por entre o universo caçando, prendendo e matando tudo que os seus senhores desejassem.


A praça ressoava com os sussurros de milhares de pessoas que assistiam em varandas indicadas a meros cidadãos. Por entre as quatro torres de vidro com mil e duzentos andares cada uma ficava a praça da libertação. Um espaço aberto feito de mármore trazida do planeta terra inferior. Toda vestida de branca, a praça apenas mostrava no centro um retrato sobre o primeiro imperador cravada em ouro com cerca de oitocentos metros. O retrato brilhava com a luz dos dois sois do planeta. Este era o sítio escolhido todos os anos para a benza.


“E a tua alma, a quem pertence?”

“Só a mim.” – A única coisa que lhe era permitida possuir. Ser só sua.

“Guardiã da luz levanta-te, sente o calor e o amor do Império enquanto extingues o herege alienígena que hoje aqui te oferecemos aos olhos de todos aqueles que irás defender e proteger.” – Este era o momento que ela mais desejava. Sentir a mão do seu senhor no seu ombro. Já não era uma recruta, já não era uma mancha sem significado nas forças Imperiais, mas sim, uma guardiã. Alguém com força e voz própria.

“Bem-vinda, Guardiã.” – Sussurrou-lhe o velho conselheiro.


Ao deixar de sentir a mão levantou-se calmamente e em paz. Todos aplaudiam gritando tanto pelo nome da ordem dos guardiões como pelo império. Esta era a sua casa, este era o seu mundo. Ao abrir os olhos, fixou a sua atenção no público. Viu homens, mulheres e crianças. Todos sorriam e riam. Nesse momento ao olhar para as faces que a rodeavam questionou-se se estavam em tamanho êxtase pela sua benza ou pelo que ia acontecer de seguida.


Na verdade, este era só o primeiro passo até se tornar numa verdadeira caçadora. O segundo acontecia já de seguida e o terceiro ia ser o mais doloroso de todos. Como é que se consegue derrotar maquinas ou raças mais avançadas do que nós? Tornamo-nos mais fortes do que eles.


Tão simples quanto isso.


Começava com a inserção de um soro no sangue tornando a pele e o sistema imune a quase todos os tipos de dor e venenos conhecidos. Um chip com um computador pessoal e único é depois preso ao cérebro afectando todas as partes do corpo ampliando velocidade, resistência e em poucos caso criando poderes de telequinesia. O chip era como uma chapa de identificação para cada um dos guardiões. Mais uma serie de extensões ou aumentos eram incorporados no corpo tornando os guardiões autênticas máquinas de guerra.

Os espectadores na praça gritaram ainda mais alto quando um servidor, vestido em mantos negros com padrões de ouro nas mangas se aproximou trazendo com eles a primeira verdadeira arma de um guardião, de um caçador. A lança.


A praça cheirava a sangue e a morte.


Ela observava o seu alvo. Um ser do planeta de kalistraida. Nu e preso com correntes olhava de frente para a sua futura executora. Era um ser feio de feições moles verdes onde o corpo mostrava-se repleto de escamas de um outro verde mais claro. O seu olhar mostrava medo no seu interior mas o seu exterior tentava mostrar coragem e honra. Duas coisas que de nada lhe serviam neste momento, observou a caçadora. Um ser vil e impuro que serviria de exemplo para todos os futuros que ela iria caçar a matar.

Um tubo de ferro de bronze escuro é posto nas mãos da guardiã e automaticamente ele começa a vibrar ao ler as impressões digitais da sua dona. Como tudo, cada caçador tinha as suas armas e elas eram só suas. Com um movimento rápido e suave a guardiã transforma o simples tubo numa lança de três pontas comprida e afiada.

O público fica em silêncio.

A guardiã não espera nem mais um momento. Rodando habilidosamente a lança nas mãos atira-a num piscar de olhos. O som que ela faz é demasiado rápido para se conseguir compreender e o publico nem tempo tem de a ver a entrar no peito do prisioneiro. Trespassa-o de um lado ao outro fazendo-o cair de joelhos e todos sentem o seu último suspiro. Todos gritam, batendo palmas e atirando frases de apoio e veneração ao ver a caçadora a aproximar-se da sua vítima. Agarrando com firmeza a lança puxa-a num único movimento. O corpo do ser cai por terra de barriga para baixo.



Prometeu a si própria que nunca iria esquecer este dia.








Texto por.: Daniel Lopes
Imagem por.: Desconhecido. Cidade sci fi.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A Guardiã Parte I






A caçadora tapa melhor a cara com o lenço negro carregado de pó da tempestade de areia que se avizinha. Observa o deserto que a rodeia e o vento que começa a ganhar velocidade antes de inserir as coordenadas no computador de dados que carrega preso dentro da carne e da pele do seu braço esquerdo. Ele apita com cada número que insere. No corpo usa trapos de tecido castanhos escuros e outros claros em cima de outros iguais mas sem esconder as linhas sensuais e firmes do seu corpo trabalhado. Uns óculos escuros com captação de imagem e mira telescópica incorporada brilham aqui e ali sempre que um raio de luz bate neles. O computador demora um bocado a indicar as coordenadas. Não existe rede suficiente neste calhau é o pensamento que lhe vem à cabeça tal como este ser o pior início de um trabalho que alguma vez teve. Um planeta morto, confirmado. Poeira e quase sem ligação com a nave mãe, confirmado. Calor infernal, confirmado. Informação concreta sobre o seu alvo, nenhuma. O normal na verdade.

O droide em forma de ovo de cor amarelo queimado que flutua ao seu lado presente a perda de paciência da sua dona e como forma de protesto solta umas faíscas. Ela ignora-o dando um chuto na areia com as suas botas pesadas pretas que lhe chegam ao joelho. Desta vez o robô ignora-a de volta.


Com as mãos metidas em luvas finas com os dedos cortados ela pousa as mesmas na anca enquanto a sua paciência se vai esgotando.

“Computador, dá-me a informação sobre o alvo mais uma vez.” – Uma imagem nas lentes dos seus óculos de três pontos verdes vai piscando e efectuando o download necessário.


“Devo ignorar o pedido anterior guardiã?” – Pergunta-lhe o computador com uma voz mecânica e pouco natural que só ela consegue ouvir.

“Não maldito computador. Preciso que apenas faças duas coisas ao mesmo tempo. Consegues isso pelo menos?”

“Com certeza guardiã.” – Os três pontos voltam a piscar – “Nome do alvo, El-Jor. Natural de, desconhecido. Idade, desconhecida. Poderes ou Fonte de poder, Sol. Crimes, assassinato. Assalto a três bancos centrais do Império no sistema solar XV456.”

“Boa… um ser que a sua fonte de poder é o Sol… ainda bem que este calhau flutuante encontra-se mesmo próximo do sol. Um mimo mesmo. Se calhar ter escolhido um deserto para esperar por ele não foi assim tão boa ideia por parte do comando.”

“Errado guardiã. O comando é a mão do Império e eles tem sempre razão. A bolha de invisibilidade em que nos encontramos torna este local indicado para um assalto de surpresa ao alvo.”

“Sim, sim… e associados. Algum?”

“Afirmativo. Três, mas existe possibilidade de El-Jor poder estar a viajar com mais.”

“Algum deles é nosso conhecido?”

“Afirmativo. Nome, Lex Kent. Natural de, planeta Terra Superior. Idade, 926. Poderes ou Fonte de poder, desconhecidos até á data. Crimes, desconhecidos.” – Aparece uma foto dos dois homens no visor em 3D mostrando as faces em pormenor. – “Informação sobre as coordenadas já é conhecida. Deseja ouvir, guardiã?”

“Prossiga.”

“Local, planeta Terra Inferior. No século XXI este era o local da cidade de Tijuana do antigo pais conhecido como México. Chegou a ter uma população de 5.7 milhões de cidadãos até ao dia da grande guerra seguida pela aproximação da lua ao planeta em 60% que causou a destruição de 99% da vida no ano de 3546.”

“E agora não passa de uma grande pedra flutuante.”

“Essa informação é incorrecta guardiã.”

“Se soubesses como eu te odeio… se não estivesses preso no meu braço, no meu sangue ou se não fosses um chip dentro do meu cérebro já te tinha desfeito em mil pedaços. És mais aborrecido do que um hyadra de pila pequena.”



O computador não responde.


Uma nuvem de fumo começa a crescer no horizonte. Ainda muito pequena e incerta para um qualquer conseguir perceber, mas não para uma caçadora de eleição do Império. A Guardiã perde logo a sua postura aborrecida ignorando a voz do computador na sua cabeça que lhe fornece informação sobre o terreno e o vento. O droide mexe-se ao seu lado sentindo um pequeno movimento no solo. Ela também sente o mesmo.



“Imagem ampliada computador.”

Consegue ver duas naves de pouca altitude que se mexem a grandes velocidades. Como se estivessem a fugir de alguma coisa. Ela sorri.

“Distancia e informação computador.”

“Distância é de 2.4 quilómetros. Dois veículos de pouca altitude carregadas com seis metralhadoras de 120 milímetros e quatro canhões de curto alcance.”

“ Só boas notícias. O nosso alvo encontra-se dentro de alguma das naves?”

“Afirmativo Guardiã.” – O sorriso cresce na face da caçadora por debaixo do pano. – “Distância é de 2.2 quilómetros.”

“Vamos lá tratar disto antes que o dia comece a ficar ainda mais quente.”

“Guardiã, recomendo…”

“Tu, não, recomendas, nada. Eu sei muito bem o que faço.” – Ela estica os braços para a frente dobrando depois as costas para trás. Ouve-se os ossos a estalar. – “X-vor, uma espingarda MK.x1 por favor.” – Só o droide é que ela trata pelo próprio nome. Talvez porque ele não fala ou porque ele pode-se moldar em tudo que ela desejar em termos de armas.



O droide, o último da classe X-tor, treme antes de os seus metais começarem a separar-se e a formar-se numa espécie de espingarda de longo alcance com dois canos compridos maiores do que um braço de um homem onde luzes vermelhas brilham.


“Munição de perseguição com perfuração de escudo X-vor.”

“Distância é de 1.8 quilómetros guardiã.”


A espingarda flutua no ar e as suas luzes ficam verdes indicando que a munição já se encontra carregada. A caçadora pega nela encostando-a ao seu ombro, afastando as pernas preparando-se para premir o gatilho.


“Computador marcar alvos. Dois. Condutores.”

“Afirmativo.” – Dois círculos viajam pelas lentes dos seus óculos fixando-se em dois pontos diferentes. Um em cada uma das naves. A imagem amplia e as caras de dois humanos fixam-se no seu olhar. – “Distância é de 1.6 quilómetros.”

“Este gosta muito de viajar com humanos. Pena nenhum deles ser o nosso alvo.”

“Guardiã, consigo ler que é possível disparar furando o metal da nave acertando fatalmente no alvo de nome El-Jor com uma probabilidade de 96%.”

“Sim, mas onde esta a piada nisso?”


O computador não responde.


“Manter a toda a altura a bolha de invisibilidade computador.”

Ela sorri novamente mas desta vez, maliciosamente, antes de disparar. O seu dedo carrega suavemente no gatinho puxando-o para trás até ouvir o click. A espingarda dá um coice enorme empurrando-a para trás mas ela não perde o seu equilíbrio nem a segurança nos seus alvos. As balas viajam a velocidades impressionantes passando por cima e por baixo de uma da outra até seguirem os seus caminhos. É num piscar de olhos que as cabeças dos dois pilotos explodem como se fossem um balão com o impacto das balas. Claro que sem os pilotos as naves acabam por cair na terra do deserto.
Ela observa o cenário orgulhosa de si própria através dos seus óculos com a espingarda novamente a flutuar ao seu lado com os metais a separarem-se e a fundirem-se em pequenos movimentos.


“Aqui vamos nós.”
Fim da Parte I
Texto por.: Daniel Lopes
Imagem por.: Desconhecido, mas parabéns ao artista.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Sem título.






Lembro-me perfeitamente do nome do seu beijo. De como a conheci a olhar para a ponte D. Luis no Porto sentado numas das cadeiras brancas de plástico que havia na varanda do palácio de Belmonte. Era nessa mesma varanda que eu passava a maior parte dos meus dias de estudante. Os seus cabelos castanhos-claros caiam com tal perfeição nos seus ombros abaixo como se tivessem sido desenhados dentro de um sonho meu. Olhos verdes claros, tais como os meus. Uns jeans justos rasgados no joelho direito e uma t-shirt com minha banda preferida estampada nela foi tudo que bastou para eu me interessar logo naquele momento. O seu sorriso era sincero e ali ao olhar para mim tremiam com o nervosismo agudo de quem o tenta controlar para dizer a primeira palavra.
Preferi adiantar-me.


“Olá. Tudo bem?” – A frase típica de quem se cruza com alguma regularidade pelos corredores da universidade mas sem se conhecer pessoalmente.

“Sim. Tudo bem.” – Olha para a vista e senta-se ao meu lado. Não mesmo ao meu lado. Mantém uma cadeira de espaço entre nós. “Contigo, tudo bem?” – pergunta enquanto procura por algo na carteira. Um cigarro não, por favor.

Tira o maço de tabaco.

“Tudo em ordem. A aproveitar o bom tempo.”

“E aulas?” – enquanto acende o primeiro cigarro.

“Acho que devem estar a correr bem. Não me apeteceu ir.” – Encolho os ombros ao inclinar um pouco mais a cabeça para trás a tentar apanhar o sol.

“Costuma acontecer-te muitas vezes isso? Não te apetecer ir…” – olhando pela primeira vez directamente para mim. Eu respondo ao olhar.



Quase que me perco nos seus olhos.



“E tu, não tas em aulas?”

“Não me apeteceu ir” – Sorri, enquanto volta a por o cigarro na boca. – “Ia a entrar para a sala de aula, mas vi-te aqui e a tua postura convenceu-me.”

“A minha postura?”

“Sim. O “relax” todo que transmites. Por isso se chumbar à disciplina a culpa é tua e só tua.”

“Acho que é algo com que consigo viver.”

Ajeita o cabelo, prendendo-o por detrás da orelha que brilha com o sol do inicio de Verão que bate na varanda. Ela repara que a observo. Fujo com o olhar. Ela sorri.


Silencio. Olhamos em frente.


“Como é que te chamas?” – pergunto. - “Gosto da tua t-shirt” – atiro eu tentando fugir à minha vergonha e nervosismo que começa a subir-me pelo corpo.

“Obrigado. Chamo-me…”





Tudo o resto a seguir passou demasiado depressa. A primeira vez que caminhamos até a estação dos comboios. O primeiro pequeno-almoço antes das aulas. A primeira saída à noite. Como conheci os amigos dela e ela os meus. Como dois mundos diferentes e tão iguais se fundiram. A música. Os concertos. Os festivais e o primeiro beijo. Os sonhos em conjunto e as viagens de carro. O mar. Os banhos de mão dada. O riso. O amor eterno gritado aos céus. A primeira discussão.





Tudo, passou, demasiado, depressa.









Texto por.: Daniel Lopes

Imagem por.: Desconhecido. Summer of Love. 1967





BTW - Summer of Love.:


The Summer of Love was a social phenomenon that occurred during summer of 1967, when as many as 100,000 people converged on the Haight-Ashbury neighborhood of San Francisco, creating a cultural and political rebellion. While hippies also gathered in New York, Los Angeles, Philadelphia, Seattle, Portland, Washington, D.C., Chicago, Montreal, Toronto, Vancouver, and across Europe, San Francisco was the center of the hippie revolution, a melting pot of music, psychoactive drugs, sexual freedom, creative expression, and politics. The Summer of Love became a defining moment of the 1960s, as the hippie counterculture movement came into public awareness. This unprecedented gathering of young people is often considered to have been a social experiment, because of alternative lifestyles that became common, both during the summer itself and during subsequent years. These lifestyles included communal living; the free and communal sharing of resources, often among total strangers; and free love.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Projecto 23 - Semana VII






O calor humano é algo apaixonante. Principalmente quando vem de pessoas completamente desconhecidas. O cheiro a álcool, doce nos seus hálitos, onde as palavras dançam ao ritmo da música que sai das colunas do bar atrai-me em maneiras desconhecidas. Já tinha saudades em sair de casa e de ver pessoas. Ao princípio senti-me algo à parte e mal vestido, mas ganhei coragem no momento em que me apanhei com um copo na mão. É algo que posso fazer para passar despercebido. Beber e observar, fazendo de conta que espero por alguém.

Os corpos mexem-se e movem-se. Tocam-se sem se aperceberem e vão transferindo calor para criar ainda mais calor uns para os outros. Isto tudo devido ao poder da música.

Fecho os olhos e vejo a minha vida a passar diante dos meus olhos como um filme antigo onde os amarelos queimam a fita. Onde eu nasci, onde eu brinquei em pequeno nos jardins da casa. Como riscava o papel de parede em cores fortes de vermelhos e azuis. Os meus pais amando-me, odiando-me para voltarem a amar-me ainda com mais força. O mar, a minha liberdade, as folhas brancas que eu desenhava e escrevia sem parar. Como é que é possível ter envelhecido e crescido tão rápido. Ao olhar para trás, não me dei conta pelo tempo a passar, mas, o que mais me entristece é que podia ter aproveitado os meus dias cem vezes mais. Perdi tanto tempo em jogos, em pensamentos, a ouvir opiniões e a pensar nas possibilidades que acabei por me perder vezes sem conta.

Hoje, quem sou eu? Não o sei. Não me conheço. Acordo todos os dias e olho-me nu ao espelho para não reconhecer de quem é aquele reflexo. Desejo por tatuagens no corpo que me digam o que fazer, que me digam quem ser, porque eu não sei mais quem quero ser.
Ouço a banda sonora que toca na minha mente e sei que ela irá tocar a sua última música caso eu não faça algo para mudar tudo, mas, eu não sei o que mudar. Eu simplesmente não sei o que deixar para trás. Do que abdicar. Só desejava correr como o forest gump sem destino traçado, sem planos e acima de tudo sem nenhum objectivo. Correr por apenas gostar. Ver os dias a nascer e a morrer para nascerem outra vez. Ver as montanhas pintadas com gelo e os campos verdes virgens deste mundo. Correr e correr… até me encontrar… sem nenhum plano. Sem nada delineado. Existe pensamento mais sincero do que este?

O meu corpo sai do bar e entra no meu local de trabalho. Sento-me sempre na mesma cadeira. Quando ela aparece estragada por algum motivo, vou buscar outra igual. Sempre cinzenta e preta. A luz amarela que vem do tecto queima-me os olhos e todos os dias faz-me morrer mais um bocado por dentro. O ar condicionado... Incrível ao pensar que perco tempo a falar nas pausas ou em casa de como ele funciona mal. Todos os telefones e computadores à nossa volta… abelhas a morrer… mais um e-mail com uma resposta negativa… apetece-me gritar. Gritar e gritar… demasiado tempo no computador… demasiado tempo em coisas inúteis… poupar… poupar para o futuro… medo do futuro… olhos vermelhos… sangue nos olhos… mais poupar… perder-me… o bater das asas de uma borboleta pode mudar o mundo… dedos no teclado … esta luz amarela cega-me.

Esta vida criada para mim não é a minha. Não sou eu. Não sei quem eu sou. Fui eu que a criei? Não a quero mais. Nunca a quis. Bato com a minha cabeça vezes sem conta numa folha de papel branco e no desenho que o meu sangue faz não sei o seu significado.

Quem sou eu hoje? Quem serei eu amanha? Se souberes diz-me… se não… deixa-me apenas… descobrir.


Texto por.: Daniel Lopes
Imagem por.: Melody of Leeloo "Dance with the wind"



"Para o homem, apenas há três acontecimentos: nascer, viver e morrer. Ele não sente o nascer, sofre ao morrer e esquece-se de viver"
Jean de la Bruyère

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Projecto 23 - Semana VI






O sol queima-me e assa-me a pele como se próprio Deus me tivesse atirado para dentro do forno do inferno. Com os lábios já a quebrar e a rogar por água caminho mais uns metros neste deserto. Carrego a arma ao mesmo tempo que me vou aproximando dela. Uma bala, duas balas, três balas… oh yeah… tenho que admitir que esta parte foi “cool”, era só estar a ouvir a música “you on the run” dos The Black Angels, quando começa aquela batida aos vinte segundos e tornava este momento perfeito.


O corpo ainda treme. Tenta agarrar-se ao que lhe resta da vida. Triste mas compreensível. O deserto. Este sitio antes de tudo acontecer era um espaço com um lago, jardins e risos, mas, depois tudo morreu de fome e tudo desapareceu ficando apenas os corpos abandonados e sem nome para os verdadeiros anjos negros. Eles rodeiam os ares e apenas se mantém vivos porque nos vão comendo. Abutres. O último de nós um dia também vai desaparecer e a seguir são eles. Aproveitem enquanto poderem é o que eu costumo dizer.


O deserto, um bom local para se morrer. A minha mulher não concorda. Bem… nunca concordou com nada. Na verdade já nem me lembro bem porque é que me casei com ela. Sei que antes tinhas umas belas pernas, agora, agora nem isso tem. Não era as mamas nem o rabo… era mesmo aquelas pernas macias e compridas. Sempre fui um tolo por pernas.


O carregador entra com uma facilidade anormal na arma. Estou possuído. Sinto-me tão bem. Feliz, livre e em controlo. Humm… como este sentimento me lava a alma. É impossível conter o meu sorriso. Meto a mão no bolso. Um isqueiro e um cigarro acesso na boca.
Agora tenho centenas de cigarros em casa porque já não preciso de pagar um rim, um pulmão e dois cancros por eles. São de graça nos tempos que correm.


Agacho-me e deito-me ao lado dela. O sol cega-me. Tiro os óculos de sol do bolso. Sim, muito melhor agora.


Como te sentes meu amor? – Pergunto a tentar ser o mais cordial possível.


Ela nada diz. Em todo o nosso casamento teve sempre algo para dizer, mas, no momento mais importante da nossa vida, não diz nada. É preciso ter lata realmente.


Estou a falar contigo meu amor – pico-lhe com a ponta da arma para lhe chamar a atenção – estas a ouvir?


Nada.


Realmente é preciso ter falta de educação… - sento-me e dedico-me a tirar a terra seca que ficou agarrada as calças. - Sempre disse que te tinham educado muito mal...

Estudo-a com o meu olhar. Ela apenas respira mas cada vez menos. O tiro que lhe dei não a matou mas tornou-a calma e passiva. Por um lado admiro o tempo que esta a aguentar ainda por cima ao ter suportado a viagem até aqui.


Lamento meu amor, mas estavas a pedir por isto. Era desta forma ou comia-te… literalmente – passando-lhe a mão pelo cabelo castanho claro.


Ela sussurra algo.


Que foi que disseste querida? – Aproximo-me dela. Os lábios dela estão cheios de sangue.


Nada.


Estas a deixar-me curioso assim… - irritante até ao fim esta mulher – diz-me lá… repete para mim, para o teu marido.


Nada.



Que bela peça esta.



O mundo já acabou há dois anos. Sem sabermos, morremos já há dois anos. A nossa sentença foi assinada quando vieram informar nas notícias que não havia mais abelhas. Que elas tinham morrido todas, e nós como seres racionais que somos, rimo-nos. Afinal de contas como podia um ser tão pequeno ser o nosso calcanhar de Aquiles e começar o processo de nos extinguir a todos? Mas, num abrir e fechar de olhos, certos alimentos começaram a aumentar de preço atingindo preços irreais e depois foi a vez de tudo o resto começar a ficar cada vez mais escaco. Os ricos deixaram de ser ricos porque gastavam tudo em comida e os pobres começaram a matar e a pilhar cada vez mais em busca de alimento. Histórias eventualmente foram surgindo. Pais que comiam os filhos, filhos que comiam os pais. Vizinhos que comiam vizinhos e um numero cada vez maior de desaparecidos. Tudo morreu, tudo desapareceu tão rápido sobre o chão morto do mundo.


Um dia um velho que vivia num prédio abandonado com granadas e um gato amarrado ao corpo tentou-me explicar o porque de termos chegado a este ponto, mas sinceramente não lhe prestei muita atenção. Só pensava na fome que tinha. Era só nisso que conseguia pensar. Nisso e no gato que ele fazia festas. Todos olhavam para ele e para o seu gato. A fome era demasiado. Só as granadas mantinham os mais audazes longe.


Não queria comer carne humana. Prometi a mim mesmo que não ia seguir por esse caminho, mas, sabia e sentia que cada vez mais pessoas pensavam e começavam a alimentar-se dessa forma. Eu e a minha mulher prometemos que preferíamos morrer do que chegar a esse ponto.


Os governos nada faziam. A polícia menos fazia e tudo ficou maluco. Desesperos e gritos nas ruas durante a noite ou durante o dia. Nada mais importava. A morte chegou e sentou o seu cu gordo mesmo em cima de nós até a fome ficar, simplesmente insuportável.


No dia que me preparava para ir buscar o gato do velho, estando ele ou não com granadas a minha mulher disse-me que nesse mesmo dia um grupo de putos tinha ido lá de manha ameaçando de morte o velho caso ele não lhes desse o gato, mas, quando chegaram lá era o próprio velho que o estava a comer. Cru e tudo. Começou a rir-se ao mesmo tempo que chorava e cuspia sangue e tirava as protecções das granadas. Metade do prédio caiu.


Foi nesse dia a visitar o que restava do prédio que encontrei o baú do velho cheio de armas e fotografias dele em novo debaixo dos escombros do prédio. As armas nunca foram tão poderosas como em tempos de desespero. Protegia-me e protegia a minha mulher. Tudo o que se aproximava eu disparava e matava, até ao mítico dia. O dia de hoje.


Fecho os olhos e vejo a imagem dela com a faca na mão a cortar o pescoço de uma criança que apanhou na rua. Como a merda de uma pedófila se tratasse chamou-a, fez de amiga dela e ganhou a confiança dela oferecendo-lhe um abraço e um sítio seguro para ela chorar, mas, momento em que a criança baixou as defesas ela cortou-lhe a garganta como se nada fosse.
Uma nuvem negra assaltou-me os olhos e disparei sobre ela.


Agora aqui estamos nós.


Levanto-me, arranjo os óculos de sol e aponto-lhe a arma. Ela ainda tem a coragem e as forças para olhar nos meus olhos.


Este era o teu sítio preferido antes de tudo aconteceu meu amor. – Não consigo perder este sorriso. – Agora é o raio de um deserto e tu que nunca gostaste muito de desertos.


Fico a espera de um porquê e de uma razão. Apenas de uma resposta.



Tinha… fome… precisava… - As palavras saem-lhe com dificuldade mas mesmo assim saem-lhe.



Precisavas… - Repito ao olhar para o céu e a ver as asas negras dos abutres no alto. – Precisas é de um médico ou de comer um belo guizado de borrego, mas, eu infelizmente, só tenho balas.



Disparo a arma com um arrepio na espinha. Acerto-lhe mesmo no meio da cara e ela explode manchando o manto castanho claro do deserto de vermelho vivo. Atiro-lhe o cigarro e questiono-me. Norte, sul, este ou oeste? Cheiro o ar e algo me diz que a norte vou encontrar um belo javali com castanhas preparado para mim.




Sim, perdi a minha sanidade. Que deus me abençoe. Um tiro na cabeça e lá vou eu.


FIM







Texto por.: Daniel Lopes
Imagem por.: Desconhecido - medieval beekeeper


BTW.: A Verdade é esta e ela é bastante simples: As Abelhas estão a desaparecer! Os grandes paises já vieram avisar para esse acontecimento. Mais informação poder ver no Jornal o Público ou aqui - http://www.buzzle.com/articles/disappearing-bee-theories.html


Este texto vem em nascimento com o Tema VI que é Abelhas e o seu desaparecimento. Podem ler a versão do Angelus no blogue dele que eu recomendo vivamente.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Mensagem Importante


Um bem haja a todos que conseguem vir aqui ler estas palavras.


Antes de mais as minhas sinceras desculpas, devido ao facto que nestas últimas semanas não ter vindo aqui "postar" nenhum novo texto. Creio que até eu fui afectado pela nuvem de férias (de uma maneira menos agradavel do que muitos) que se sente neste nosso cantinho do mundo.


Prometo que o Projecto 23 volta já muito em breve.


De relembrar que o Projecto 23 consiste num exercício de escrita que irá durar vinte e três semanas. Ou seja, durante essas semanas eu e o Miguel Gonçalves iremos apresentar textos novos sempre baseado num tema novo.


23 semanas, 23 historias, 23 temas.



Obrigado a todos que tem comentado aqui, que me tem dado os comentários pessoalmente, pelo MSN ou de outra qualquer forma que agora não me lembro.


Obrigado.


Daniel Lopes

terça-feira, 27 de julho de 2010

Projecto 23 - Semana V



A noite caiu cedo hoje. Ao olhar para o céu, a Inspectora Rodrigues morde o lábio ao notar que ia ser mais uma noite sem estrelas. Mal tinha começado o seu turno quando recebeu uma chamada para se dirigir com urgência para uma casa meia a cair na terra dos seus pais que já à muito faleceram. Esta casa era apenas mais um local de crime para ela. Uma casa ao fundo de um caminho repletos de silvas e ervas daninhas que lhe davam acima do joelho. Com ela estava, como já era habitual, o Inspector Lopes. Um homem grande com a barba mal cortada, braços que pareciam dois troncos e uma barriga que já se começava a notar pela camisa. Os seus olhos eram claros e penetrantes e não havia homem melhor para questionar a escumalha. Era só uns minutos na sala de interrogação e eles quebravam sempre. Era a qualidade que mais gostava naquele homem.

Rodrigues já não se lembrava o porque de ter entrado para a força policial ou como chegou até inspectora, mas, não lhe interessava. O que desejava era apanhar o máximo possível de homens e mulheres más antes de morrer. Desprezava quase tudo e quase todos, desde pequena que via tudo um bocado no preto e branco. O cinzento para ela, apenas trazia-lhe confusão. Claro que tinha muitos esqueletos no seu armário, mas não ia ser agora que os ia revelar.

Dois polícias guardavam a casa e falavam com a mulher com aspecto cadavérico, toda vestida de preto com o cabelo cinzento puxado para trás que supostamente descobriu os corpos dentro de casa. A casa já estava a ser assaltada por ervas e pequenas árvores, a tinta da casa já não existia e a madeira das portas e janelas foi arrancada. Uma típica casa abandonada desta zona. Rodrigues lembrava-se de ter brincado em muitas quando era pequena ou de ter perdido a virgindade numa praticamente igual a esta para o seboso do Carlos.

Ao passar pelos dois polícias quase não olha para eles mas acha estranho a velha não aparentar qualquer sinal de medo na face. Ao subir o primeiro degrau sente o cotovelo do Lopes contra o seu que lhe oferece de seguida uma mascara. Ela agradece de bom grado pois cheiros são algo que ela não suporta. Ela acredita piamente que não consegue manter nenhuma relação porque descobre sempre algum cheiro que abomina nos seus amantes.

“Vamos lá ver o que temos aqui então.” – Diz Lopes ao entrar dentro de casa apenas iluminando o seu caminho com uma lanterna. Rodrigues liga a sua também.

“A velha tinha que encontrar os corpos durante a noite, não podia ser durante o dia e tornar isto mais fácil pois não?” – Pergunta Rodrigues ao seguir atrás dele na casa.

“Desde quando é que alguma vez é fácil…” – responde Lopes e ela não tinha resposta para ele.

O ar dentro da casa estava abafado, quente, e isso devia-se exclusivamente à decomposição que existia dentro de casa. Ao entrarem dão logo de caras com um corredor sujo com o papel de parede manchado pela água e já inexistente em muitos sítios. As lanternas mal iluminam alguma coisa mas mesmo assim prosseguem. O corredor percorria a casa até ao fundo mas antes havia duas portas uma de cada lado. Uma dava para uma sala grande apenas repleta de lixo e queimada no meio. Uma fogueira pelo aspecto. Com um olhar rápido não reparam em nada de importante. A outra porta dava para outra sala que tinha alguns livros já podres espalhados pelo chão. Com o pé Rodrigues mexe um pouco neles. Uma marca sem pó fica no lugar deles. Não, nunca ninguém mexeu neles recentemente, pensa para com ela própria. Continuam o corredor até ao fim da casa para entrar na cozinha antes de subirem as escadas à sua esquerda.

O que era antes a cozinha, agora é um talho. O primeiro corpo. A primeira coisa que Rodrigues vê é um braço cortado que tem um rasto de sangue até ao resto do cadáver. Um homem. O corpo estava encostado a uma parede meio sentado. Os olhos fechados com o queixo virado para baixo. O braço tinha sido cortado mesmo pelo ombro e sangue escorria dele.

“Olha para o sangue Lopes. Não o mataram há muito tempo…”

“Não o mataram Rodrigues, vês mais algum ferimento? Cortaram-lhe o braço e deixaram-no o morrer.”

Sim, ele tinha razão. Ao aproximar-se do corpo com cuidado para não calcar o braço ou o rasto de sangue ela nota automaticamente que só o braço tinha sido cortado com violência. Alguma força considerável foi usada. Afinal o homem não era propriamente pequeno. O homem estava de tronco nu e alguma coisa foi escrita no peito. Com a lanterna mais aproximada consegue ler o que estava escrito.

“Ri-te agora.” – Repetiu a inspectora em voz alta – “que raio Lopes…”

“Essa mensagem é para nós ou para ele?”

Rodrigues começa a observar o resto do lugar. Nada. Apenas azulejos antigos, sujos e esta carnificina. Questiona-se como é que a velha estava tão serena depois de ver isto. Nem móveis, nem garrafas de cerveja, nada de nada. Só o raio do braço e o corpo mutilado. Isto não foi aleatório. Volta a agachar-se perto do corpo. Tudo isto contém uma mensagem senão porque o trabalho de deixar frases cravadas no corpo?

“Ainda existem mais?” – pergunta ela ao Inspector Lopes.

“Pelos vistos sim, mais dois pelo menos. Lá em cima pelo que me informaram.”

“Estas a dizer-me que a velha, vem aqui ao meio da noite ao que ela chama passear, entra dentro desta casa abandonada, encontra este cenário e ainda tem coragem de ir ao andar de cima ver o ambiente?” – Fixa a lanterna novamente no braço – “Não é estranho ela estar lá fora tão serena?”

“Não sei que te diga Rodrigues, pode ser uma velha dura e curiosa. Sabes que existem muitas assim por esta zona.” – Lopes aponta a lanterna para a cara dela – “só se quiseres falar já com ela enquanto esta fresca na cabeça, mas parece-me uma ideia muito remota que ela tenha alguma coisa a ver com isto.”

A luz cegue-a.


“hey, Otário tira a luz da minha cara…” – Tentando tapar a luz com a cara virando-a para o lado.

Mas antes de conseguir dizer mais alguma coisa um pontapé é espetado na sua cara. Sente automaticamente dois dentes a ceder. A lanterna voa pelo ar, mas o treino sobe ao de cima e a Inspectora Rodrigues saca logo da pistola apontando ao seu atacante mal cai no chão de barriga para cima.


“Lopes… que… “ – arrancando a mascara da cara cospe um punho de sangue para o chão – “que merda é esta?” – ela treme por todos os lados. Não compreende o que lhe esta a acontecer.


Mas o Inspector já não esta na cozinha. Já não consegue ver a sua lanterna. Apenas a sua esta ligada caída no chão juntamente com ela e com aquele cadáver.


“Lopes, onde é que estas?” – grita – “isto é alguma brincadeira? Quando te encontrar vou-te por uma bala no meio da testa meu cabrão…”

“Ri-te agora, puta!” – A voz dele vem de longe, mas ainda dentro de casa.

Ela levanta-se e apanha a lanterna apontando a luz á entrada da cozinha. Ela sabe que isto não é nenhuma brincadeira de mau gosto. Sabe que a levaram até ali para a matarem. Ainda não sabe o porquê mas sabe agora a resposta ao porquê de a velha estar tão relaxada e sem medo. Ela não viu este corpo. Os dois polícias lá de fora estão metidos nisto e provavelmente pagaram à velha para estar ali com eles. Um teatro… não passa tudo de um teatro para a matarem. Todo o seu corpo treme.


“Porquê que estas a fazer isto Lopes?” – atira a pergunta ao ar ao mesmo tempo que se aproxima da porta de saída da cozinha espreitando para o corredor com a luz apontada.


“Coelhinho… coelhinho…” – esta voz não é do inspector Lopes. Tem que ser um dos polícias lá de fora. A voz dele vem também dentro de casa. Vem do andar de cima. – “Anda cá coelhinho.”


Na saída da cozinha existe logo umas escadas que dão para o primeiro andar. Ela sabe que não pode sair calmamente. Que o mais provável é estar alguém no topo das escadas. A sua respiração é acelerada e o que mais lhe irrita é de não saber donde vem ou o porquê deste pesadelo todo. Tem que correr. Se quer sair viva da cozinha tem que correr.
A inspectora agarra com mais força a arma e sai da cozinha a correr, disparando dois tiros para o andar de cima. Tiros são disparados de volta na direcção dela, mas nenhum lhe acerta. Ela não sabe para quem ou para o que é que disparou mas tinha que distrair quem quer que estivesse no topo das escadas enquanto corria. Pára no meio do corredor e sabe que tem duas portas antes de sair lá para fora.


“Eu não vou cair assim com tanta facilidade meus cabrões!” – Grita para a casa toda.


Como resposta recebe risos de mão dada com eco. Nesse momento um frio sobe pelo seu corpo todo. Começa a pensar na sua vida. Como esta sozinha, como nunca teve ninguém, como nunca amou nada.


“Sabes ao que faziam a mulheres como tu antigamente?” – A voz é do inspector Lopes, mas Rodrigues não consegue perceber de onde vem – “Cortavam a cabeça, mergulhavam em petróleo e espetavam-na no topo das muralhas. Tu não mereces ser quem és. Não és nada. És apenas um cão” – Vozes a imitar cães a uivar e a ganir vem do topo da casa.


Milhares de pensamentos correm a sua cabeça. Nunca ninguém na esquadra mostrou indícios de não gostar dela, ou era ela que tem andado distraída? Sim, ela sabe que o álcool tem tomado um papel importante na sua vida, mas não consegue pensar num único momento que insultou ou deixou mal visto alguém.


“Porquê que estão a fazer isto?” – Grita a Inspectora já em desespero verificando novamente o carregador na sua arma.


Nenhuma resposta chega durante uns segundos que mais parecem séculos. Ela sabe que se não fizer algo e rápido não vai conseguir sair dali com vida.


“Ri-te agora!” – é a única resposta que ela recebe e desta vez das três vozes.


“Vejo-vos no Inferno então.”


Pega na arma e corre novamente pelo corredor. Ao aproximar-se das portas que dão para as salas paralelas antes da saída, salta e atira-se de cabeça lá para fora. Vê por segundos, um dos Policias na sala onde estavam os livros velhos. Vê o sorriso negro na cara do homem. Sente pela primeira vez medo de verdade. Mal cai no chão levanta-se e começa a correr para fora da casa, tropeça por segundos no corpo da velha que jaz no chão com o pescoço cortado, mas tenta não pensar e apenas corre. Sabe que não esta a correr na direcção de onde estacionou o carro, mas, não pode parar. Só pára junto de uma árvore, escondendo-se atrás dela. Desliga a lanterna para não mostrar a sua posição e fica parada a ouvir. Pensava que tinha corrido mais, mas o mais provável é ter corrido em curva porque consegue ver perfeitamente o telhado da casa daqui.
Ouve um barulho nas suas e vira-se apontando a arma.
Uma arma está apontada de volta a ela. É outro polícia, um diferente. Não o conhece. Nunca o viu. Eles eram apenas três pensa para com ela.


“Se pensaste por algum momento que somos só aqueles que viste na casa estás muito enganada, minha querida” – diz o Policia ao sorrir para ela – “agora baixa a tua arma e sê um lindo e obediente cãozinho…”


“Nunca gostei de cães… nem de ser tratada como um…” – responde a Inspectora tentando procurar coragem em algum lado. O Policia tinha os olhos negros que ficavam estranhos no seu cabelo loiro. – “Agora baixa tu a tua antes que eu te arrebente com os miolos.”


“Isso não vai acontecer…” – Piscando-lhe o olho.


A inspectora atira-se para o chão, metendo uma bala mesmo na barriga do polícia. Como previu o homem disparou em frente, e é por isso que fez cair o corpo no momento que disparou. Ele caiu automaticamente no chão, mas não morto, apenas agarrado à dor. Ela podia ter acabado com ele ali mesmo, mas, sabe que o barulho indicou a posição dela, por isso decide correr novamente.
Ainda mal tinha dois passos sente uma pancada no meio da cara. Tudo explode na sua cabeça. Não larga a arma mas um pontapé é pregado na barriga. Cai no chão e tenta-se proteger dos golpes, mas eles são demasiado fortes. Tenta apontar a arma e disparar mas sem sucesso. Mais um pontapé no meio da cara. Começa a sucumbir ao desmaio, mas os golpes param.


“Não desmaies agora… ainda tens que te rir para nós.” – A voz é do Lopes. Ela tenta olhar para ele, mas vê tudo distorcido.


“Porquê… não percebo…” – consegue dizer por entre o sangue que lhe sai da boca.


“Matea-a! Mete essa vaca de uma vez!” – é o homem agarrado ao estômago que grita. Consegue perceber que esta a entrar em choque. – “Disse… mete-a!”


“Oh por amor de deus, morre de uma vez” – Lopes dá um tiro no homem – “Nem a matar um único palhaço consegues fazer bem Raquel…” – Aponta a arma agora a ela.


Ele nunca a tinha chamado pelo nome próprio.


“Porquê? Lopes…” – pergunta novamente. Só quer saber porquê.


“Raquel, a verdade é que já fazemos isto à muito tempo… já matamos muitos e de maneiras completamente diferente. Digamos que é o nosso desporto semanal. ” – Mesmo sem conseguir olhar para ele, consegue sentir o seu sorriso. A sua maldade que a agarra como tentáculos.


“Mas… porquê eu?”


Ele agacha-se e pega na face dela e olha fixamente para ela. Ela só consegue ver morte nos olhos claros dele.


“Respondo-te na próxima vida.”

Texto por.: Daniel Lopes

Imagem por.: Desconhecido - 1934 - Força Policial em Hudson.

BTW.: Pellers foram a primeira força Policial do Mundo em 1829. Citando.: "They became known as 'Peelers' and 'Bobbies' after their founder, and wore a dark blue longcoat and a tall hat which they could use to stand on and look over walls. Blue was chosen because it was the colour of the popular Royal Navy rather than red which was the army's colour and struck fear into the people because of the way soldiers had been used to smash protests. The only weapon was a truncheon."

Este texto vem em nascimento com o Tema V que é Crime e Assasinos. Podem ler a versão do Angelus no blogue dele que eu recomendo vivamente.

Obrigado a todos que estejam a ler isto semanalmente. Gosto de acreditar que vens ler mas não comentas. É isso mesmo que me faz continuar. Obrigado.

terça-feira, 20 de julho de 2010

High Fidelity - Malcontent





Hoje ponho nos auscultadores uma das bandas que tive o prazer de ver e ouvir no palco EDP no passado Sábado dia 17 de Julho no Super Bock Super Rock, os Malcontent.


Pelo que pode constatar com conversas com amigos ou de ler em fóruns provavelmente o dia que eu fui foi uma boa escolha. Li e ouvi, criticas sobre o espaço, má organização, sobre o parque de estacionamento que era demasiado pequeno (principalmente no último dia) e muitas bocas a reclamar sobre a má iluminação. Com esta última concordo, lembro-me de ter reparado nisso quando estava perto do Palco EDP a ouvir Patric Watson e a falar com os membros dos Malcontent e aquilo estava numa escuridão total.


Ora bem, no primeiro dia cheguei ao recinto relativamente cedo, até para conseguir ver os Malcontent que actuavam às 18:00h. Como tal, aquilo estava relaxado, ainda com pouca gente. O ambiente que senti foi de puro relaxe. Aterrei juntamente com o meu irmão numa das mesas em frente ao palco EDP e esperei pelo começo do concerto. O tempo foi passando, juntamente com as meninas do Banco BES e da TMN que também iam passando e animando o espaço. Antes do concerto fomos à procura do stand de venda oficial das bandas… e aquilo sim, deixou muito a desejar.


Os Malcontent entram em palco e eu só conhecia uma música, que até foi melhor, porque fui completamente arrebatado. Entraram em força com um som impecável, quem dera ao Julian Casablancas ter começado com o som tão afinado como eles. O instrumental desta banda é de cinco estrelas, e foi com muito prazer que também pode constatar o Paulo Furtado aka Legendary Tiger Man a ver o concerto e a gostar pois o abanar de cabeça dele mostrava isso mesmo. Ao principio não sabia se gostava da voz do vocalista Sérgio Costa ou se o instrumental estava demasiado rápido para ele. Agora ao ouvir o álbum deles aprendi a ouvir de outra forma e a verdade é que a voz do Sérgio fica mesmo muito bem. Sabe cantar e o inglês dele não nada forçado.


Notava-se que a banda estava, realmente, contente por estar a actuar naquele palco. O baterista, Filipe Pereira não parou de sorrir o concerto todo. Outra coisa que eu notei foi a presença de palco que o baterista juntamente com o sampler Edgar Moreira davam. Muita força em palco que estes dois tem. O Baixista André Couto tem toda a pinta cool de “Interpool” em palco o que combina realmente bem com o resto da banda. Ainda com pouca afluência o concerto, mais pessoas começaram a aproximar-se com o desenrolar do concerto e isso é bastante positivo.


Ao vivo, esta banda é realmente um prazer de ver e ouvir. Espero vir ter o prazer de os ver num próximo concerto num espaço fechado como o musicbox em Lisboa.


Agora, O Disco!


Começa logo com a música “your love is an empty place” que é na minha mais sincera opinião, das músicas mais fortes de todas as 12 músicas do álbum. Nota-se que é uma produção caseira mas muito acima da média. Do albúm recomendo também as músicas “sugar kiss”, “scream dream”, “go on”. Em algumas músicas a voz de Sérgio Costa faz-me lembrar a voz do vocalista dos Black Rebel Motorcycle Club e isto, acreditem, que é um grande elogio da minha parte. A Bateria é um prazer de ouvir tal como som do baixo o é. Os samplers do Edgar dão um gosto especial e uma característica única.


Sinceramente, um daqueles álbuns que vou andar por ai a recomendar a muito boa gente.
Com alguma sorte e muito trabalho esta banda vai fazer a sua marca.



9/10 no Albúm.







Texto por.: Daniel Lopes
Imagem.: Malcontent

BTW.: Nos próximos dias irei partilhar uma visão mais pessoal sobre a banda com uma ilustração que ideia ao ver o concerto. Também irei partilhar algumas fotos tiradas durante o concerto.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Projecto 23 - Semana IV









Grita. Gritos. Maresia. Silêncio. No céu a luz engole o azul-escuro de diamantes. Dor.



Um amor de cabelo vermelho e um amor de cabelo negro como a noite. Estas são, as minhas luas. Acordo deitado no meio de um campo de rosas brancas que me sussurram, que se chamam o mar da vitalidade. Ao levantar-me os espinhos das rosas não me cortam nem me arranham, apenas se afastam suavemente. Balançam e dançam ao sabor do vento sem ele haver. Olho para o meu corpo, para as minhas mãos e para os meus pés descalços e não os conheço. Todo o meu ser sofreu do tempo e a velhice chegou até mim e ela não foi simpática nem benevolente. Com as mãos tento sentir o meu rosto mas a ele também não o reconheço. Alguém se aproxima ao longe, caminha vindo das sombras para lá das rosas. Ao aproximar-se as sombras vão-se dissipando para dar lugar a uma torre que cresce com cada passo que ele dá. Vestido de negro, ele vem. Ao chegar ao pé de mim reparo que no lugar da sua cara existe um espelho. No espelho não vejo o meu reflexo mas sim o que a minha vida podia e não podia ter sido. Ele nada diz e eu nada pergunto. A sua mão vestida com uma luva branca suja de terra passa pela minha face e o espelho começa a quebrar. Ao quebrar o seu corpo também se começa a desaparecer. No fim fica no ar apenas pequenos pedaços de vidros minúsculos.



Fecho os olhos e vejo-te a ti, com vontade de partir todos os espelhos da tua vida. Sentes a tua raiva a libertar-se e com ela a levar toda a tua dor que escondes debaixo da nossa árvore. Uma árvore não conta segredos.



Segredo meu.



Ao abrir novamente os olhos prendo o meu olhar na torre. Começo a caminhar na sua direcção e, como esperado, as rosas vão-se afastando. Pai, mãe, será que vos irei encontrar novamente? Por favor mãe estende os teus dedos e livra-me desta dor, pois ela matou-me e eu já não tenho alma para vender.



Rosas dão lugar às árvores e elas crescem e ganham caras. Cada uma delas olha para mim e chama pelo meu verdadeiro nome. Uma árvore tudo sabe e nada diz. O lugar vai ficando mais apertado e abafado. Os ramos tapam o céu mas a torre não se esconde de mim. Eu sei que caminho seguir e ela sabe que eu me aproximo. Não, não caminho num sonho, mas sim, é o sonho que caminha sobre mim. Ao tocar numa das árvores ela começa abruptamente a queimar-se. Chamas voam por todos os lados até não restar nada e todas as outras gritam assassino, apontando na minha direcção. Só consigo olhar para as suas reacções. Eu nada fiz. Eu não lhe fiz mal, apenas tentei senti-la. Senti-a por breves momentos mas ela incendiou-se e agora todas gritam. Gritam até eu começar a sentir sangue a sair dos ouvidos. Gritam e gritam até começarem todas a pegar fogo uma de cada vez. O fogo começa a rodear-me, este maldito fogo que me começa a queimar a carne, e mais uma vez voltamos ao mesmo.



Dor para dar lugar a mais dor. Este é, e sempre será o meu fim.



Ao cair em terra consigo ver parado no ar um anjo com vestes vermelhas rodeado por corvos. Ela olha para mim. O seu cabelo é frio como o dia de ontem, onde pedaços de gelo se formam nele. Um sorriso, consigo ver nos seus olhos. Um leve movimento com as mãos e as chamas afastam-se de mim, ganindo. Ela pousa ao meu lado e um corvo por sua vez pousa no seu ombro. Agacha-se e passa a mão pelo meu corpo queimado. A pele sara, mas, o interior não. O corvo fala comigo e diz-me aquilo que eu preciso de ouvir. Diz-me que eu não preciso de chegar à torre, mas eu ignoro as suas palavras. O Anjo ajuda-me a pôr-me de pé e eu agradeço-lhe do fundo do coração. Ela olha para mim surpreendida e eu tento ir buscar o meu agradecimento ao coração. Com as mãos afasto as minhas costelas para descobrir que o meu coração já não está lá, apenas encontro uma chave que pende de um fio no lugar dele. Ela sorri novamente, mas, desta vez com os lábios. Pega na chave e abraça-a. Lágrimas descem pela sua face abaixo. Ela chora por sete dias e doze noites e eu no mar á beira da torre entro por entre as suas lágrimas. O meu corpo nu agradece a água e a limpeza.



Ao chegar à superfície subo para cima de um dos meus sonhos já há muito perdido. Ele e muito outros, dos quais já não me lembrava, estão espalhados pelo mar fazendo um caminho até á torre. No céu sinto o mesmo corvo implorando-me para que não vá para lá.



Para que não entre na torre.



Eu nada ouço e tudo ignoro pois este é o meu último caminho e nele jaz a minha esperança antes de acordar ou morrer. Ao chegar á torre ela é igual a todas outras. Feita de pedra sobre pedra. Fria, cinzenta e velha, mas, algo dentro dela chama por mim. Sabe o meu nome como as árvores sabiam. Chama por mim. Exige que eu entre.
Ao abrir as portas de madeira velha da torre entro, não numa torre mas sim, num grande salão. Ele brilha com as suas colunas de ouro e pedra suave como seda. Ao longe um trono de folhas se encontra. Um velho com uma coroa de bronze senta-se nele. Com a sua mão branca e fraca faz sinal para eu me aproximar. Ao chegar mais perto reparo nas suas rugas carregadas, no seu cabelo comprido que se mistura com a barba. Os seus olhos são cegos mas ele sabe que eu estou ali. Ele sabe que eu me aproximo e acima de tudo ele sente-me, tal como eu o sinto, pois ele sou eu.



Ele sorri para mim e um veado morre aos seus pés. Caio de joelhos e o meu mundo sente-me. O velho grita sem som ao pegar na espada encostada ao seu trono e bate com ela no chão partindo-a em bocados. Ao olhar para ele só consigo dizer:




- Não morrerei neste sonho que construíste para mim.












Texto por.: Daniel Lopes

Imagem por.: Desconhecido

Imagem 2 por.: Desconhecido





Peço desculpa por o texto desta semana ter chegado tarde, mas a vontade andava a fluir em doses pequenas. Aqui fica o texto da Semana IV onde o tema é: Sonhos.
Como sempre podem ir verificar o texto do Angelus no seu blogue. Recomendo vivamente.

Se estas ai, se existes e segues estes texto, fica aqui desde já o meu sincero Obrigado.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Projecto 23 - Semana III







Ao lamber a pele dela por entre as coxas, o sabor misturado de sal com suor da praia entrava pela sua boca. Como ela a achava deliciosa, sensual e quente. Cada dia que passava era apenas para desejar por outro momento como este. Gostava da forma como o cabelo dela se entrelaçava nos dedos das suas mãos, quando estavam nuas coladas uma á outra numa qualquer cama, mas o que ela realmente amava era sentir os mamilos dela a roçarem nos dela, que a faziam ficar ainda mais excitada. Uma acreditava que estava a fazer amor, enquanto a outra acreditava que aquilo era o melhor sexo que tinha todos os meses.


Não se encontravam todos os dias, claro que não. Só mesmo na última sexta-feira de cada mês. No mesmo bar e sempre à mesma hora. Quase não se falavam aí. O bar estava repleto de outras pessoas, todos juntos como sozinhos. Quadros de um qualquer pintor sem importância emolduravam as paredes pintadas de vermelho tinto, onde as cortinas que caiam em ondas do tecto até ao chão em tom castanho-escuro englobavam tudo o resto. Cumprimentavam-se em público com um sorriso e o diálogo não passada mais do que perguntar o que a outra estava a beber e se queria ir para algum lado mais relaxado.



Podes-te perguntar porque que estou a falar sobre estas duas mulheres ou como é que eu sei tanto sobre elas. A isso nunca te irei responder. O que realmente precisas de saber é que eu consigo ver tudo e tudo me vê a mim. Existo como não existo. Serei importante para ti num determinado momento como no outro já não o serei, mas, o que verdadeiramente importa aqui é eu a continuar a história sobre estas mulheres e talvez aprendas algo sobre o mundo em que vives.


O amor foi criado apenas para ser vivido uma única vez. Não, não temos três grandes amores na vida. Temos um e ele é sempre aquele que tu pensas que não é. Muitos nem nunca o sentem ou quando o sentem é em modo de doença, violento ou simplesmente mortal. Depois existem aqueles que quando descobrem que o encontraram já é tarde de mais e aí, voltamos, aos temas de amor doença, amor violento e amor mortal. Imagina o amor como um pedaço de barro ainda por trabalhar. Pões as tuas mãos nele e formas a tua visão nele. Transformas aquele pedaço no que queres e depois vais carregando dentro de ti até que encontras alguém que achas que é merecedor. Como te sabe bem entregar-te. Como fechas os olhos e te sentes completo e é então que milhentas questões surgem-te na tua mente e todas essas questões têm o maldito “se” nelas.



Será? E se? Seremos?



O amor é todos os deuses num só. Não te deixes iludir nisto, ele é tudo e todos. Não escolhe idades, não escolhe generos nem sexos e sobretudo não te vai escolher a ti.
Pensa nisto, pela ideia da igreja cristã, Jesus morreu para nos salvar. Pelo seu amor por nós. Mas quem é que pôs o sentimento de amor nele? Foi Deus? Esse sentimento apareceu do nada? È um bocado impensável para nós, meros mortais, supor que esse sentimento vem do nada. Que não houve uma identidade qualquer maior do que o universo a criar algo que não conseguimos agarrar, ou compreender a matemática de como foi ele criado.


Agora vou-te pedir para imaginares mais uma vez nesta hipótese que te vou apresentar. Numa folha branca desenhas um círculo, não precisa de ser perfeito porque nada o é. Apenas, desenha um e escreve a palavra “nada” nele. Esse circulo é o nada ao mesmo tempo que é tudo. Ele está carregado de ideias, situações, sonhos, sentimentos ou vontades. Tudo o que possas imaginar ali dentro a lutar pelo seu espaço. Como é que esse círculo vai sobreviver com tanta coisa no seu interior? Provavelmente a criar novos pequenos círculos. Um deles vai-se chamar violência, outro vai ter o nome de saudade ou de fome, como pode ter o nome de vontade, decisões, dor, esperança e em tudo o mais que possas pensar.


Vou-te perguntar apenas isto. Todos esses pequenos círculos não derivam do grande? E se chamares ao grande de amor, não vai tudo derivar dele? Vontade deriva de amor por algo ou alguém. Esperança que alguém amado volte ou que alguém que já não amamos se vá embora. Dor pela perda de alguém que amamos, e por assim adiante.


Se amor fosse um Deus, ele era bom como também era maldoso e sem compreensão.



Mas bem… Estou a desviar-me um pouco do tema que me trouxe aqui.
Sim, como estava eu a dizer, elas encontravam-se apenas uma vez por mês. No mesmo bar. Não falam uma com a outra até estarem na cama juntas e cada uma delas deseja por aquele dia do mês de maneiras completamente diferentes. Uma delas, que esta ali na cama, a que sente realmente amor e não desejo, sentiu o seu coração a quebrar ainda há dias quando viu a outra na rua a passar a passadeira vestida com um longo vestido castanho claro, calçada com uns tacões pretos de marca e o cabelo solto ondulado. Ao levantar-lhe a mão e a sorrir viu-se a ser ignorada. Passou por ela como se nada fosse. Como se nunca tivesse existido.
Até hoje aquele pensamento assaltava-lhe todos os segundos mas foi sempre afastado com a ideia de – “Não me reconheceu de verdade. Era de dia e encontramo-nos sempre de noite, apesar de ficarmos sempre juntas até ao pequeno-almoço. Não, não me viu mesmo, senão porque não havia de parar e falar comigo?”


Mesmo ali na cama, nua, excitada com o calor e com o prazer esse pensamento mantinha-se na sua mente. Por um lado, não queria que aquele momento acabasse enquanto por outro lado, só queria que aquilo se despacha-se para ter a oportunidade de lhe perguntar. Para conseguir matar aquela comichão que não conseguia coçar.


Os beijos de língua quentes e perfeitos seguiram-se uns aos outros mas sempre de mão dada, com o toque de dedos que exploravam o corpo. Descobriam pontos nunca antes tocados daquela forma e o calor dos corpos aumentava até os lençóis de tom creme começarem a agarrar-se nos corpos. O quarto era apenas iluminado com uma luz de presença que lhes dava oportunidade de observarem o corpo da sua parceira. Era indescritível o prazer nas faces de ambas, ao perceberem que os seus corpos pareciam mais belos por estarem sem as roupas, recheados de pequenas gotas de suor que escorriam de uma para a outra como uma música. Os lábios molhados sabiam onde beijar e roçar. As mãos sabiam quando arranhar a pele de uma forma completamente inexplicável. As suas mentes iam-se esvaziando de tudo enquanto o orgasmo se ia aproximando com as suas bocas a abrirem-se à procura de ar.


Todos os segundos seguintes passaram-se demasiado depressa.


Eventualmente, a noite foi caindo para dar lugar à luz que começou a entrar por entre as persianas. Batia e iluminava o quarto de uma maneira demasiado bonita para os momentos que se seguiam. Dormiam juntas mas apenas uma mão procurou a da outra durante a noite no sono e essa afastou-se sempre. O cabelo era a única coisa que se mistura nelas de manha, tudo o resto estava afastado a uma distância estudada.
Os dois corpos acordam ao mesmo tempo. Os olhares delas encontram-se para se desenvolverem num sorriso. A que amava sabia que estes eram os momentos mais importantes entre elas. Os momentos em que falavam.


- Bom dia – disse a outra a levantar-se – não puseste despertador…

- Pois não… quis que descansasses… queria que estivesses aqui. – Respondeu ela com um sorriso demasiado sincero desta vez.

-… Acredito que sim… mas assim, chego atrasada, não é? – Não era uma pergunta. Soube mais a um murro no estômago do que outra coisa. Levanta-se e começa a arranjar o cabelo com as mãos ao olhar para o espelho grande de moldura preta encostado à parede escura do quarto.
Com um pequeno riso virgem ela não resiste em perguntar. – Atrasada para onde? Hoje é sábado. Não me digas que trabalhas ao sábado?

- Não. Não interessa para onde. Só sei que estou atrasada porque mais uma vez não puseste o despertador. – Os olhos dela estão longe. Quer sair dali.

- Eu da última vez pus despertador e acordei-te não acordei? – Sem perder o sorriso e ignorando a frieza nas palavras que lhe foram atiradas.

- Sim, acordaste.

- E o que é que fizeste? Ou melhor, o que é que fizemos?

- Tomamos o pequeno-almoço.

- E depois? – O sorriso cresce.

- Deitei-me outra vez.

- Então porque é que hoje havia de ser diferente? Anda para aqui. Deixa-me abraçar-te e beijar-te. – As suas palavras estão cheias de carinho. Não podia estar mais exposta. Este amor dentro dela já anda a crescer há demasiado tempo. Ajeita-se na cama e senta-se encostada, agarrando apenas no lençol para se tapar minimamente. As manhas são sempre frescas naquele quarto.

- Porque hoje não é o outro dia… e tenho mais do que fazer… - a sua resposta é rápida e certeira. Não o mostra mas sabe que a magoou e isso deu-lhe um prazer maldito.

- Mas… ok, tudo bem. Apenas pensei que podíamos aproveitar mais um bocado. – Os seus olhos enchem-se de lágrimas escondidas e levanta-se vestindo as cuecas. Tira uma t-shirt aleatória da gaveta e veste-a. – No outro dia viste-me na rua não viste? – Não resiste em perguntar. Em não saber mais um segundo.


Um riso maldoso enche o quarto. – Mas, tu, estas, maluca? A cumprimentares-me… na rua? Claro que te vi e é claro que não te ia cumprimentar.

- E porque não? Afinal nós conhecemo-nos. Nós estamos juntas… dorm…

- Olha, e marca bem as minhas palavras – diz a outra interrompendo com o dedo apontado a ela enquanto acaba de pegar nas suas coisas sem nunca parar de ajeitar o cabelo. – Nós não somos namoradas. Apenas dormimos juntos. Fora daqui não te conheço e aqui dentro só te conheço para fodermos.


O olhar não podia mostrar mais dor. Não percebe como consegue ser tão fria e má. Ela ama-a. Como pode amá-la? Caminha até a janela e olha para a rua. Não consegue ver nada. Os seus olhos já não vêem. Só conseguem ver mais e mais perguntas à frente.


- Pensava que éramos mais do que isso. Eu aprendi a amar-te… o meu amor por ti cresceu… - a voz é fraca e derrotada mas nestes assuntos a esperança pode-se tornar numa doença. A ideia que a esperança é a última a morrer é muito maldosa.

- Oh por favor… amor? Pensas o quê? Que vamos ficar juntas? Eu não te conheço. Achas mesmo que eu ia deixar a minha família por ti… por nada mais do que um bom pedaço de cama…


E agora tudo é posto na mesa. A dor começa a transformar-se em algo completamente diferente. O calor que começa a sentir no corpo já não é de prazer. Algo caminhou sobre os sonhos dela e agora eles caem todos.


- Família? Tu… tens… - A voz começa a aumentar. Algo acende nos olhos e o quarto enche-se de raiva. – Família!? Como pudeste… Estar comigo… quando tens… Tens filhos? Responde-me. Tens filhos?

A outra sente a voz atirada a si como uma força esmagadora e a maldade de ainda há segundos nas suas palavras começam a transformar-se em receios.

- Tenho. Tenho dois filhos… sempre te quis disser… não te queria…

- Magoar-me? Mentir-me? Foder-me e deitar-me fora? – Grita ao mesmo tempo que começa a aproximar-se da outra. Meia tonta com a raiva segura-se na cómoda sem nunca perder os olhos nela. – Anda… diz-me a verdade… mostra-me quem és…

- O que é que tu queres? Pensavas que isto era o quê? Claro que te menti e nunca te contei nada. Mas não, tu tinhas que pressionar sempre. Puxar a minha mão durante o sono. Pedir-me para ficar. Só fiquei na última vez porque tive pena tua...

A mão dela limpa a cómoda mandando tudo que estava em cima dela para o ar, contra a parede e para o chão. Ela grita e ri-se para voltar a gritar novamente. Não consegue perceber. Não consegue interiorizar. Não controla o que está a sentir. A outra afasta-se assustada com tempo apenas para agarrar a carteira do chão e abraçá-la junto ao peito.

- Pena? Ficaste com pena… e eu a pensar… como conseguiste. Sua cabra. Sua vaca. Sempre… Só queria conhecer-te e agora dizes-me que tens dois filhos… Vens aqui uma vez por mês foder-me…

- Espera. Estás muito nervosa. Tem calma… eu sempre quis contar-te tudo. – Tenta acalma-la com a mão fazendo sinais para que fique afastada.

- Mentira! Só mentiras! – Apanha um perfume do chão e atira-lhe, que se desfaz na parede, não lhe acertando por pouco. – Tudo não passa de mentiras e eu amava-te. Ignoras-me. Não falas, só me fodes e agora dizes que tens pena de mim?

A outra grita de medo e corre para fora do quarto passando pela sala até chegar á porta de saída. Tenta abri-la mas esta fechada à chave. Ela segue-a com os olhos em lágrimas e pisados.

- Por favor… deixa-me ir embora. Desculpa. Eu juro que nunca mais me vês. Só quero ir embora. Por favor…

Com a voz calma ela responde – eu fecho sempre a porta de saída à chave. Tenho medo de dormir sozinha e de ser assaltada... – Pára e respira. Olha novamente para a outra e sorri. Não é um sorriso de carinho mas sim um sorriso de quem perdeu tudo. De quem lhe teve tudo roubado num segundo. Pega num globo de neve com a base de metal que estava em cima da lareira na sala. Sente o medo da outra a invadir a sala. Sente prazer nisso. – Desculpa, mas não sei onde meti as chaves. – Diz enquanto caminha na direcção da outra.

- Oh meu deus… tem calma… não te fiz mal nenhum. Nunca te tratei mal. Vinha porque me fazias sentir bem. Por favor, não me magoes….

Antes de conseguir dizer mais alguma coisa em sua defesa, já a primeira pancada na cabeça tinha sido dada fazendo o globo voar no sentido contrário. A outra caiu logo no chão como de um boneco de trapos se tratasse. O corpo ficou imóvel. Não gritou porque a voz não saia. Apenas tontura, as mãos dormentes repletas de formigueiro e uma dor que começava a crescer lá ao fundo no interior do seu corpo.

- Trataste-me abaixo de cão. Mentiste-me. Usaste-me. Cuspiste no meu amor… - sussurra ela por entre dentes enquanto se senta com as pernas abertas sobre ela – o amor por ti… como eu te amo… como eu vou sentir a tua falta… como eu… te odeio. – Põe as mãos no pescoço e começa a apertar lentamente. – Deixei-te beijar-me. Deixei-te entrar na minha casa… no meu corpo e para quê? Para olhares para o lado quando me vês na rua? – A pressão no pescoço começa a aumentar. A outra quer gritar com a dor que sente na cabeça e na garganta. Tenta puxar o cabelo dela, mas ela só aperta mais e mais. Ar… como ela deseja por apenas mais uma lufada de ar. – Tens filhos? Não mereces ter filhos. Eles não vão sentir a tua falta. Não quando souberem o que me fizeste. Não, quando perceberem a dor que puseste dentro de mim. – Os olhos da outra abrem-se mais quando percebe que não vai conseguir sair dali, tenta arranhar e dar murros, mas sem efeito. Ela nada sente. Lágrimas começam a descer lentamente pela face da outra. - Odeio-te… odeio-te… morre por favor. Eras minha… como eu te odeio.



A outra morre e ela continua a apertar-lhe o pescoço ainda com mais força.



FIM.





(Poem #597) He wishes for the cloths of heaven
Had I the heavens' embroidered cloths,
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half-light,
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly, because you tread on my dreams.
-- William Butler Yeats

poema que me inspirou e que me continua a inspirar



Texto por.: Daniel lopes

Imagem 1 por.: Le Sommeil, ou 'o sono' de Gustave Courbet (1866).

Imagem 2 por.: Safo, por Charles-August Mengin (1877)


BTW.: A palavra lésbica vem do latim lesbius e originalmente referia-se somente aos habitantes da ilha de Lesbos, na Grécia. A ilha foi um importante centro cultural onde viveu a poetisa Safo, entre os séculos VI e VII a.C., muito admirada por seus poemas sobre amor e beleza, em sua maioria dirigidos às mulheres. Por esta razão, o relacionamento sexual entre mulheres passou a ser conhecido como lesbianismo ou safismo.
Safo foi uma poetisa grega que viveu na cidade lésbia de Mitilene, ativo centro cultural no sécul VII a.C.. Nascida algures entre 630 e 612 a.C., foi muito respeitada e apreciada durante a Antigüidade, sendo considerada "a décima musa". No entanto, sua poesia, devido ao conteúdo erótico, sofreu censura na Idade Média por parte dos monges copistas, e o que restou de sua obra foram escassos fragmentos.
Safo concedeu uma escola para moças, onde ensinava poesia, dança e música - considerada a primeira "escola de aperfeiçoamento" da História. Ali as discípulas eram chamadas de hetairai (amigas) e não alunas... E a mestra apaixona-se por suas amigas, mas, de todas... dentre elas, aquela que viria a tornar-se sua maior amante, Atis - a favorita, que descrevia sua mestra como vestida em ouro e púrpura, coroada de flores. Mas Atis apaixona-se por um rapaz mais tarde.

Como podem reparar o titulo deste texto esta de algum modo estranho. Isso acontece por causa de um novo projecto que começa hoje. O Projecto vai correr da seguinte forma.:23 temas, 23 Historias, 23 semanas.Durante 23 semanas, Miguel Gonçalves aka Angelus e Daniel Lopes aka GodsHand irão escrever 23 historias únicas sobre 23 temas diferentes sendo o desta semana sobre Amor e Violencia. Podem encontrar a Historia do Miguel para este tema no Link do blogue Sob o Feitiço da Lua

sábado, 3 de julho de 2010

Projecto 23 - Semana II








Dez de Outubro. Ano, 1492.

“O Mar é desconhecido aos meus olhos. A sua cor azul avermelhada tira-me o sono. Nenhum mar tem esta cor. Estamos perdidos, e já o estamos há mais de quarenta dias. A comida e a água começa a faltar. Consigo a pressentir a dúvida nos olhos dos homens. Os seus olhares muito me dizem. Temos que encontrar terra em breve. Urgentemente. Por favor, meu Senhor, meu Deus, ajuda-me.” – Sentado fica a olhar para as palavras que acabou de escrever no diário de bordo. Convocou uma reunião com os seus homens hoje, mas, ainda não sabe o que lhes dizer. A mão passa por cima da sua ferida recente. A Infecção aproxima-se e ele sabe disso. Se não encontrarem terra ele morre pelas mãos dos braços que controla e comanda ou pela própria ferida. O seu Deus não é um bom deus, mas, é o único que ele tem.

Ouve a bater na porta e sabe que esta na hora.

O capitão enverga uma barba comprida cinzenta com tranças bem trabalhadas. O seu cabelo era escasso na parte de trás, mas onde havia era longo. Antes de sair dos seus aposentos privados passou o cabelo por água límpida e tentou arranjar as suas roupas já amarrotadas pelos dias seguidos que tem tentado dormir sem as despir. Apenas as suas botas pretas até ao joelho brilham. Tudo o resto, a camisa branca, as calças cinzentas e o casaco comprido azul-escuro com bordados de símbolos de outros tempos pendiam um pouco para a má apresentação. E apresentação junto dos seus navegadores é tudo. Fecha o casaco para esconder as manchas de álcool na camisa, pega na espada que prende à cintura e sai. Um homem guarda a porta, o mesmo que bateu à porta, a quem o capitão faz um aceno para prosseguir. Caminham pelo corredor do barco.
O barco mal se mexe. As águas estão calmas hoje. Ao chegar ao exterior o calor è avassalador. Demasiado quente. Agora consegue perceber porque é que as águas têm o tom vermelho. Porque no interior estão a arder. Com a mão a fazer de pala na testa olha para o seu barco. Não existe uma ponta de vento o que torna a viagem ainda mais longa. Comanda ao homem ao seu lado para reunir o resto dos cães como ele lhos chama e depois de já todos estarem juntos ele decide dar esperança aquelas almas. Fé.

- Meu Irmãos, hoje é o dia. Hoje é o dia em que encontraremos a terra prometida – Grita com os braços bem levantados. A sua voz rouca impõe respeito, poder e o barco responde com um ranger.
Os homens no barco olharam à sua volta mas nada viam. Apenas mar e mar. Homens com barba e cabelo sujo. Outros que não tomavam banho há vários anos e outros que vivem em barcos a mais anos do que aqueles que se lembram. Todos eles homens duros e de coração cinzento procurando riqueza noutras terras ou apenas novos dentes de ouro para alguns.

- Hoje ele falou comigo! Sussurrou-me ao ouvido. Prometeu-me que hoje iremos encontrar a terra que tanto merecemos. – Gritava o capitão para os seus homens. O capitão com a sua ferida no olho direito que ganhou ao mandar um escravo borda fora olhava para todos eles. Já nem um escravo se via no barco, pois, quando a comida começa a faltar os escravos são mandados borda fora. Com pedras amarradas aos seus pés como forma de reduzir o peso no barco e passar a haver mais comida também mais de cinquenta homens e mulheres afundaram-se no mar desconhecido.
Mas, este último escravo que se agarrou a tudo para salvar a sua vida, ganhou a atenção do mestre do barco. O capitão decidiu ele resolver o assunto e entre chicotadas sem fim o escravo foi perdendo as forças, mas não, sem antes levar o olho do seu do seu dono como forma de pagamento.
- O deus que nos ama mostrou-me o caminho. Disse-me para continuar a seguir Norte e é lá que iremos encontrar a nossa verdadeira casa…
- Mas senhor, nós já estamos assim há mais de vinte dias… Se calhar estamos no caminho errado… temos que encontrar terra ou este barco será o nosso fim – ouviu-se uma das vozes a gritar em direcção ao seu capitão e mais vozes seguiram-se a essa.
Levantou a mão como a pedir silencio – Ouçam-me e ouçam-me bem. São esses pensamentos que nos estão a privar de encontrar terra mais cedo. É o medo nos nossos corações que ele sente e que nos faz a seus olhos não ser merecedores do seu amor e de ter direito ao que é nosso. Não querem enriquecer? Não querem ser Reis da vossa própria terra? Se sim, não me venham com essas conversas pois aqui os únicos culpados são essas mesmas ideias. O próximo homem que eu apanhar com essas ideias será pendurado no convés durante três dias e três noites.
O silêncio instala-se no barco e ele sabe que ganhou esta luta.
- Posso ter um olho a menos, mas, ainda vos consigo ver muito bem! – Grita para finalizar o seu discurso.
Vira as costas aos seus homens e aproxima-se da borda. Observa o mar. O barco volta ao seu barulho normal. Trabalhos de limpeza, arranjar as cordas e as velas. Azul e vermelho os rodeia. Só este maldito mar.

Dois longos dias depois é que finalmente o vento se voltou a notar e as velas foram levantadas. Mal elas sentiram a carícia do vento encheram-se orgulho. Ninguém teve a coragem de dirigir a palavra ao seu capitão ou até mesmo de o matar, porque sem ele as coisas podiam ficar muito piores. Todos sabiam que ele já andava a mentir desde o dia do grande polvo que avistaram onde afirmou que as águas infestadas por um polvo gigante não são amaldiçoadas mas sim, puras. Dignas do seu Deus. Todos sabiam que deviam ter seguido este e nunca águas cheias de morte, mas, essa decisão não lhes cabia tomar ou dizer. Não quando podia estar em risco as suas gargantas de serem cortadas.
Os dias foram passando lentamente, e mesmo com o vento o calor era demasiado. A comida estragava-se mais facilmente e ela já não era muita. As vozes de revolta voltaram a ser sentidas, mas, o Capitão decidiu ignorar e andar mais agarrado à sua espada. O seu deus não o podia ter enganado… não podia. Tinha que se agarrar à sua fé.


Com o calor a tripulação começou a sentir as miragens normais. Castelos flutuantes. Sereias. Pedaços de terra onde nada estava. Até gaivotas alguns viram. Calor e sem nenhuma mulher no barco para acalmar os ânimos… ver terra nunca foi tão importante como agora.


- Meu bom Deus ajuda-me, ou uma alma irada vai ter a persegui-lo eternamente no seu reino – Sussurrava o Capitão por entre os dentes enquanto observava os mapas nos seus aposentos privados. Dores de cabeça começavam a piorar e a comichão era já quase insuportável.


As noites eram piores. Já não se ouvia músicas pois já ninguém tinha vontade de cantar. Todos sentiam que aquele barco já se estava a tornar num caixão gigante. O balançar e a rigidez fora do comum das aguas em que se encontravam não deixavam ninguém dormir.


Mais dez dias se passaram e o Capitão olhava para o frasco de veneno que tinha escondido na gaveta da sua mesa. Ao tirar o frasco observou-o cuidadamente. Virou-o e virou-o por entre os seus dedos e a ideia em o tomar já se estava a plantar seriamente para acabar com aquilo de uma vez. Não comia a um dia para deixar para os outros e já tinha perdido quatro homens. Um atirou-se borda fora agarrado a uma bala de canhão, outros dois morreram devido a ferimentos numa luta por um pedaço de pão e o último foi o próprio capitão que o matou quando este teve a ousadia de levantar o dedo na sua direcção. Antes que as palavras deles incentivassem os outros matou-o logo ali com a espada enfiada na garganta.

- Terra… Meu Senhor… onde esta ela? – O capitão sabia que não aguentavam mais uma semana assim. O seu ódio e o ódio da sua tripulação estavam a escalar demasiado depressa. Ele olhava para os mapas para se encontrar a come-los. A Fome já era demasiada.


Três dias depois e aquele mar infernal era a única coisa que os abraçava ainda. O Capitão continuava sentado nos seus aposentos quando bateram á porta. Pensou que se calhar era agora que o iam matar que até lhe faziam um favor, mas achava estranho se baterem á porta para o matar. Quando disse para entrar, apenas um homem entrou que pediu licença. Ele lembrava-se dele, quando entrou no barco era alto e robusto. Novo ainda. Agora estava magro, os ossos notavam-se e parecia que tinha envelhecido vinte anos. Maldito mar…


- Senhor… os homens tiveram uma nova discussão e no meio de uma luta mataram um com uma facada acidental... Pois, bem… ao olhar para o corpo parece-nos um bocado desnecessário atira-lo borda fora não o acha? – Disse o saco de ossos sem levantar os olhos para o seu Capitão.


Ele olhou-o de cima a baixo com nojo sem querer perceber muito bem o que ele estava a tentar dizer. – O que queres dizer com isso? Explica-te – exigiu saber o capitão.
Ele tossiu e com medo na voz disse – Estamos perdidos meu senhor. Não temos comida e o seu Deus não esta connosco. Ele virou as suas costas a nós. Este mar não é puro… ele é maléfico… e nós não temos comida… por isso, o cozinheiro disse que se calhar… que era isso ou morrermos todos neste pedaço de madeira flutuante. Muitos de nós estamos consigo até ao fim e não queremos nos virar contra si… mas não duvide que pomos as nossas vidas á frente da sua se isso significar sobreviver mais uns dias… - Voltou a tossir novamente a acabar a frase.
O capitão olhou incrédulo para ele. – Como é que te chamas rapaz?
- Eu não tenho nome meu Capitão. Eu nasci num barco e sempre vivi num barco. Um nome nunca me foi dado. – Respondeu sem soluçar desta vez.
O homem comandante do barco continuou a olhar para ele. Para a proposta que ele lhe estava a por na mesa. Não tinha dúvidas nenhumas que se recusasse eles viravam-se contra ele e que em vez de ser o morto matavam-no era a ele para o comer. Maldito Deus que me enganou desde o principio. Como eu te odeio por me teres posto neste mar. Será que comer carne humana de um morto os ia fazer sobreviver mais uns tempos? Este mar tem que ter um fim. É impossível não o ter. Apenas um corpo para alimentar o resto da tripulação até encontrarem terra? Maldito… Deus… mentiras e mais mentiras… quem me dera agarrar-te pelo teu pescoço de galinha e afogar-te nestas aguas… nestas águas a que nos condenaste a todos…
Voltou a olhar para o homem à sua frente. - Muito bem. Antes ele do que eu acho eu… mas, primeiro tenho um favor a pedir-te – disse friamente o Capitão.
Com um sorriso metade fome, metade vergonha e metade medo respondeu afirmamente com a cabeça e perguntou. – O que meu comandante?
Silêncio.
- Quero que mudes o nome do barco. Quero que pintes um novo nome nele. – disse o Capitão com a cabeça levantada.
O rapaz levantou a cabeça pela primeira vez e olhou-lhe directamente. – Que novo nome deseja que eu pinte?
Agarrou o veneno sem o rapaz ver meteu-o no bolso enquanto se levantada da sua cadeira. – Quero o nome Falsos Deuses pintado e isto é para ser feito já, compreendes? – Ao que o rapaz respondeu logo com um sim senhor agachando-se mais a sentir o seu Capitão a aproximar-se de si. Pôs a mão no ombro do seu tripulante e sentiu-lhe os ossos todos. Teve pena por momentos mas afastou-a logo – Agora leva-me até esse homem que perdemos. Quero despedir-me dele pessoalmente sem ser incomodado antes de o dar a vocês.


Malditos falsos deuses. Malditos sejam eles, pensou o capitão antes de sair dos seus aposentos.



Texto por.: Daniel Lopes
Imagem por.: Desconhecido. Paul and Barnadas


BTW.:1942
2 de Janeiro - Queda de Granada, tomada pelos reis católicos: fim da Reconquista
31 de Março - Decreto de Alhambra
• 3 de Agosto - Colombo parte de Espanha, em busca da América
• 10 de Agosto - O Cardeal Rodrigo Bórgia é eleito Papa com o nome de Alexandre VI.
12 de Outubro - Cristóvão Colombo chega às Bahamas. Este feito é em geral considerado o descobrimento da América.
Falece ? - Piero della Francesca, pintor e matemático italiano (n. 1416).




Como podem reparar o titulo deste texto esta de algum modo estranho. Isso acontece por causa de um novo projecto que começa hoje. O Projecto vai correr da seguinte forma.:

23 temas, 23 Historias, 23 semanas.


Durante 23 semanas, Miguel Gonçalves aka Angelus e Daniel Lopes aka GodsHand irão escrever 23 historias únicas sobre 23 temas diferentes sendo o desta semana sobre Falsos Deuses. Podem encontrar a Historia do Miguel para este tema no Link do blogue Sob o Feitiço da Lua.