
Dez de Outubro. Ano, 1492.
“O Mar é desconhecido aos meus olhos. A sua cor azul avermelhada tira-me o sono. Nenhum mar tem esta cor. Estamos perdidos, e já o estamos há mais de quarenta dias. A comida e a água começa a faltar. Consigo a pressentir a dúvida nos olhos dos homens. Os seus olhares muito me dizem. Temos que encontrar terra em breve. Urgentemente. Por favor, meu Senhor, meu Deus, ajuda-me.” – Sentado fica a olhar para as palavras que acabou de escrever no diário de bordo. Convocou uma reunião com os seus homens hoje, mas, ainda não sabe o que lhes dizer. A mão passa por cima da sua ferida recente. A Infecção aproxima-se e ele sabe disso. Se não encontrarem terra ele morre pelas mãos dos braços que controla e comanda ou pela própria ferida. O seu Deus não é um bom deus, mas, é o único que ele tem.
Ouve a bater na porta e sabe que esta na hora.
O capitão enverga uma barba comprida cinzenta com tranças bem trabalhadas. O seu cabelo era escasso na parte de trás, mas onde havia era longo. Antes de sair dos seus aposentos privados passou o cabelo por água límpida e tentou arranjar as suas roupas já amarrotadas pelos dias seguidos que tem tentado dormir sem as despir. Apenas as suas botas pretas até ao joelho brilham. Tudo o resto, a camisa branca, as calças cinzentas e o casaco comprido azul-escuro com bordados de símbolos de outros tempos pendiam um pouco para a má apresentação. E apresentação junto dos seus navegadores é tudo. Fecha o casaco para esconder as manchas de álcool na camisa, pega na espada que prende à cintura e sai. Um homem guarda a porta, o mesmo que bateu à porta, a quem o capitão faz um aceno para prosseguir. Caminham pelo corredor do barco.
O barco mal se mexe. As águas estão calmas hoje. Ao chegar ao exterior o calor è avassalador. Demasiado quente. Agora consegue perceber porque é que as águas têm o tom vermelho. Porque no interior estão a arder. Com a mão a fazer de pala na testa olha para o seu barco. Não existe uma ponta de vento o que torna a viagem ainda mais longa. Comanda ao homem ao seu lado para reunir o resto dos cães como ele lhos chama e depois de já todos estarem juntos ele decide dar esperança aquelas almas. Fé.
- Meu Irmãos, hoje é o dia. Hoje é o dia em que encontraremos a terra prometida – Grita com os braços bem levantados. A sua voz rouca impõe respeito, poder e o barco responde com um ranger.
Os homens no barco olharam à sua volta mas nada viam. Apenas mar e mar. Homens com barba e cabelo sujo. Outros que não tomavam banho há vários anos e outros que vivem em barcos a mais anos do que aqueles que se lembram. Todos eles homens duros e de coração cinzento procurando riqueza noutras terras ou apenas novos dentes de ouro para alguns.
- Hoje ele falou comigo! Sussurrou-me ao ouvido. Prometeu-me que hoje iremos encontrar a terra que tanto merecemos. – Gritava o capitão para os seus homens. O capitão com a sua ferida no olho direito que ganhou ao mandar um escravo borda fora olhava para todos eles. Já nem um escravo se via no barco, pois, quando a comida começa a faltar os escravos são mandados borda fora. Com pedras amarradas aos seus pés como forma de reduzir o peso no barco e passar a haver mais comida também mais de cinquenta homens e mulheres afundaram-se no mar desconhecido.
Mas, este último escravo que se agarrou a tudo para salvar a sua vida, ganhou a atenção do mestre do barco. O capitão decidiu ele resolver o assunto e entre chicotadas sem fim o escravo foi perdendo as forças, mas não, sem antes levar o olho do seu do seu dono como forma de pagamento.
- O deus que nos ama mostrou-me o caminho. Disse-me para continuar a seguir Norte e é lá que iremos encontrar a nossa verdadeira casa…
- Mas senhor, nós já estamos assim há mais de vinte dias… Se calhar estamos no caminho errado… temos que encontrar terra ou este barco será o nosso fim – ouviu-se uma das vozes a gritar em direcção ao seu capitão e mais vozes seguiram-se a essa.
Levantou a mão como a pedir silencio – Ouçam-me e ouçam-me bem. São esses pensamentos que nos estão a privar de encontrar terra mais cedo. É o medo nos nossos corações que ele sente e que nos faz a seus olhos não ser merecedores do seu amor e de ter direito ao que é nosso. Não querem enriquecer? Não querem ser Reis da vossa própria terra? Se sim, não me venham com essas conversas pois aqui os únicos culpados são essas mesmas ideias. O próximo homem que eu apanhar com essas ideias será pendurado no convés durante três dias e três noites.
O silêncio instala-se no barco e ele sabe que ganhou esta luta.
- Posso ter um olho a menos, mas, ainda vos consigo ver muito bem! – Grita para finalizar o seu discurso.
Vira as costas aos seus homens e aproxima-se da borda. Observa o mar. O barco volta ao seu barulho normal. Trabalhos de limpeza, arranjar as cordas e as velas. Azul e vermelho os rodeia. Só este maldito mar.
Dois longos dias depois é que finalmente o vento se voltou a notar e as velas foram levantadas. Mal elas sentiram a carícia do vento encheram-se orgulho. Ninguém teve a coragem de dirigir a palavra ao seu capitão ou até mesmo de o matar, porque sem ele as coisas podiam ficar muito piores. Todos sabiam que ele já andava a mentir desde o dia do grande polvo que avistaram onde afirmou que as águas infestadas por um polvo gigante não são amaldiçoadas mas sim, puras. Dignas do seu Deus. Todos sabiam que deviam ter seguido este e nunca águas cheias de morte, mas, essa decisão não lhes cabia tomar ou dizer. Não quando podia estar em risco as suas gargantas de serem cortadas.
Os dias foram passando lentamente, e mesmo com o vento o calor era demasiado. A comida estragava-se mais facilmente e ela já não era muita. As vozes de revolta voltaram a ser sentidas, mas, o Capitão decidiu ignorar e andar mais agarrado à sua espada. O seu deus não o podia ter enganado… não podia. Tinha que se agarrar à sua fé.
Com o calor a tripulação começou a sentir as miragens normais. Castelos flutuantes. Sereias. Pedaços de terra onde nada estava. Até gaivotas alguns viram. Calor e sem nenhuma mulher no barco para acalmar os ânimos… ver terra nunca foi tão importante como agora.
- Meu bom Deus ajuda-me, ou uma alma irada vai ter a persegui-lo eternamente no seu reino – Sussurrava o Capitão por entre os dentes enquanto observava os mapas nos seus aposentos privados. Dores de cabeça começavam a piorar e a comichão era já quase insuportável.
As noites eram piores. Já não se ouvia músicas pois já ninguém tinha vontade de cantar. Todos sentiam que aquele barco já se estava a tornar num caixão gigante. O balançar e a rigidez fora do comum das aguas em que se encontravam não deixavam ninguém dormir.
Mais dez dias se passaram e o Capitão olhava para o frasco de veneno que tinha escondido na gaveta da sua mesa. Ao tirar o frasco observou-o cuidadamente. Virou-o e virou-o por entre os seus dedos e a ideia em o tomar já se estava a plantar seriamente para acabar com aquilo de uma vez. Não comia a um dia para deixar para os outros e já tinha perdido quatro homens. Um atirou-se borda fora agarrado a uma bala de canhão, outros dois morreram devido a ferimentos numa luta por um pedaço de pão e o último foi o próprio capitão que o matou quando este teve a ousadia de levantar o dedo na sua direcção. Antes que as palavras deles incentivassem os outros matou-o logo ali com a espada enfiada na garganta.
- Terra… Meu Senhor… onde esta ela? – O capitão sabia que não aguentavam mais uma semana assim. O seu ódio e o ódio da sua tripulação estavam a escalar demasiado depressa. Ele olhava para os mapas para se encontrar a come-los. A Fome já era demasiada.
Três dias depois e aquele mar infernal era a única coisa que os abraçava ainda. O Capitão continuava sentado nos seus aposentos quando bateram á porta. Pensou que se calhar era agora que o iam matar que até lhe faziam um favor, mas achava estranho se baterem á porta para o matar. Quando disse para entrar, apenas um homem entrou que pediu licença. Ele lembrava-se dele, quando entrou no barco era alto e robusto. Novo ainda. Agora estava magro, os ossos notavam-se e parecia que tinha envelhecido vinte anos. Maldito mar…
- Senhor… os homens tiveram uma nova discussão e no meio de uma luta mataram um com uma facada acidental... Pois, bem… ao olhar para o corpo parece-nos um bocado desnecessário atira-lo borda fora não o acha? – Disse o saco de ossos sem levantar os olhos para o seu Capitão.
Ele olhou-o de cima a baixo com nojo sem querer perceber muito bem o que ele estava a tentar dizer. – O que queres dizer com isso? Explica-te – exigiu saber o capitão.
Ele tossiu e com medo na voz disse – Estamos perdidos meu senhor. Não temos comida e o seu Deus não esta connosco. Ele virou as suas costas a nós. Este mar não é puro… ele é maléfico… e nós não temos comida… por isso, o cozinheiro disse que se calhar… que era isso ou morrermos todos neste pedaço de madeira flutuante. Muitos de nós estamos consigo até ao fim e não queremos nos virar contra si… mas não duvide que pomos as nossas vidas á frente da sua se isso significar sobreviver mais uns dias… - Voltou a tossir novamente a acabar a frase.
O capitão olhou incrédulo para ele. – Como é que te chamas rapaz?
- Eu não tenho nome meu Capitão. Eu nasci num barco e sempre vivi num barco. Um nome nunca me foi dado. – Respondeu sem soluçar desta vez.
O homem comandante do barco continuou a olhar para ele. Para a proposta que ele lhe estava a por na mesa. Não tinha dúvidas nenhumas que se recusasse eles viravam-se contra ele e que em vez de ser o morto matavam-no era a ele para o comer. Maldito Deus que me enganou desde o principio. Como eu te odeio por me teres posto neste mar. Será que comer carne humana de um morto os ia fazer sobreviver mais uns tempos? Este mar tem que ter um fim. É impossível não o ter. Apenas um corpo para alimentar o resto da tripulação até encontrarem terra? Maldito… Deus… mentiras e mais mentiras… quem me dera agarrar-te pelo teu pescoço de galinha e afogar-te nestas aguas… nestas águas a que nos condenaste a todos…
Voltou a olhar para o homem à sua frente. - Muito bem. Antes ele do que eu acho eu… mas, primeiro tenho um favor a pedir-te – disse friamente o Capitão.
Com um sorriso metade fome, metade vergonha e metade medo respondeu afirmamente com a cabeça e perguntou. – O que meu comandante?
Silêncio.
- Quero que mudes o nome do barco. Quero que pintes um novo nome nele. – disse o Capitão com a cabeça levantada.
O rapaz levantou a cabeça pela primeira vez e olhou-lhe directamente. – Que novo nome deseja que eu pinte?
Agarrou o veneno sem o rapaz ver meteu-o no bolso enquanto se levantada da sua cadeira. – Quero o nome Falsos Deuses pintado e isto é para ser feito já, compreendes? – Ao que o rapaz respondeu logo com um sim senhor agachando-se mais a sentir o seu Capitão a aproximar-se de si. Pôs a mão no ombro do seu tripulante e sentiu-lhe os ossos todos. Teve pena por momentos mas afastou-a logo – Agora leva-me até esse homem que perdemos. Quero despedir-me dele pessoalmente sem ser incomodado antes de o dar a vocês.
Malditos falsos deuses. Malditos sejam eles, pensou o capitão antes de sair dos seus aposentos.
Texto por.: Daniel Lopes
Imagem por.: Desconhecido. Paul and Barnadas
BTW.:1942
2 de Janeiro - Queda de Granada, tomada pelos reis católicos: fim da Reconquista
31 de Março - Decreto de Alhambra
• 3 de Agosto - Colombo parte de Espanha, em busca da América
• 10 de Agosto - O Cardeal Rodrigo Bórgia é eleito Papa com o nome de Alexandre VI.
12 de Outubro - Cristóvão Colombo chega às Bahamas. Este feito é em geral considerado o descobrimento da América.
Falece ? - Piero della Francesca, pintor e matemático italiano (n. 1416).
Como podem reparar o titulo deste texto esta de algum modo estranho. Isso acontece por causa de um novo projecto que começa hoje. O Projecto vai correr da seguinte forma.:
23 temas, 23 Historias, 23 semanas.
Durante 23 semanas, Miguel Gonçalves aka Angelus e Daniel Lopes aka GodsHand irão escrever 23 historias únicas sobre 23 temas diferentes sendo o desta semana sobre Falsos Deuses. Podem encontrar a Historia do Miguel para este tema no Link do blogue Sob o Feitiço da Lua.
2 comentários:
"Todos sentiam que aquele barco já se estava a tornar num caixão gigante." ficou-me na cabeça. Macabro mas gostei.
Andamos todos à procura da terra prometida. Uns encontram-na mais cedo, outros um pouco mais tarde e há os que nunca a encontram...
Gosto demais dos pormenores que dás a todos os momentos da cada história. Até agora, passagens muito fortes e que dão que pensar.
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