
Sentada no centro da praça da aldeia vou aguardando.
A noite cai negra como um manto da morte. Nem uma única estrela consigo decifrar neste céu. Seguro no gato e massajo-lhe o cachaço . O ronronar dele é o meu único amigo, hoje, mas também é todos os dias o meu maior inimigo. Visto-me de negro e serram os olhos enquanto passo. Tenho gatos e olham-me de lado. Não sou casada e amo quem não devo pelas leis das suas igrejas e a maldade deles para comigo aumenta. Mas, o pior de tudo, o que eles realmente mais odeiam é de eu ser nova e possuidora de alguma beleza. Pelo menos é o que a minha mãe dizia sempre antes de morrer.
A minha mãe... morreu velha na cama depois de ter sido nova e bela. Foi violada vezes sem conta em todas as treze guerras que este paìs sofreu. Já em velha e torta costumava gozar amargamente com os velhos tempos dizendo - "Cá para mim só faziam as guerra era para me foder!".
De tantas vezes que foi violada e abusada teve oito filhos, onde sete eram rapazes que tiveram os seus fins na margem do rio. Só eu fiquei. Uma rapariga.
"Só a ti eu deixei viver. Para continuares a carregar a minha dor. Para matares o meu inicio."
Desde que tenho idade para me lembrar, senti as suas mãos asperas e duras na minha face e no meu corpo, observando-me, cuidando de mim e da minha pele. Ensinou-me a aparentar mais beleza do que realmente tenho. Dava-me liquidos diferentes todos os dias para beber que me faziam doer o estomago e vomitar ao minimo esforço ou ao mais pequeno cheiro. - "Isto é para mais tarde. Para eles sofrerem o que eu sofri".
Na altura não percebia o porquê de ela me tratar assim ou o porquê de me dar aqueles liquidos todos, mas, o que realmente não percebia era o que ela queria de mim. Que tinha eu feito de mal para merecer aquelas tareias todas onde me batia ainda mais caso eu chorasse.
Mas o dia lá chegou. O dia em que percebi tudo.
Uma nova guerra. A terra tremia debaixo dos nossos pés. O barulho do metal contra metal e o rilinchar dos cavalos enquanto se aproximavam da nossa aldeia fazia os pássaros pararem de cantar. Os homens punham-se de joelhos e ofereciam a comida, o dinheiro ou mesmo os filhos e as filhas em troca de perdão e de misericordia, mas, mesmo assim alguns perdiam as cabeças para as encontrar novamente em espetos.
A minha mãe escondeu-me antes que eles me vissem e quizessem algo com uma rapariga de apenas nove anos. Homens... Cães...
Vi a minha mãe a ser violada e não conseguir satisfazer o soldado porque "Sua velha rançosa. Sua puta velha... ah... humm... não me metes piada nenhuma." Lembro-me de como ele pegou no cabo da espada e a magoou. De como lhe deu com ela na cara trinta e uma vezes para depois a violar com o próprio ferro. Quis sair do meu esconderijo. Quis matá-lo mas ela olhou para mim e os seus olhos mandaram-me estar quieta. Entretanto a guerra lá passou e a chuva lavou o sangue do chão e sarou lentamente a mulher que me deu á luz. - "Agora já percebes. Agora já percebes porque tens que matar o meu início." - O meu futuro já há muito estava deliniado.
Hoje, aguardo, nesta maldita aldeia com os seus homens e mulheres cheios de sujidade nas unhas e no corpo. Os seus dentes podres fazem sangrar as suas gengivas enquanto me chamam nomes nas ruas. Nesta terra onde a porcaria cresce de dia para dia que dá o nascimento de uma nova guerra. A guerra santa gritam eles. O único Deus numa espada para limpar a terra de seres malditos. De pecadores como eu.
Ao longe, no negro, vejo as chamas nas tochas a aproximarem-se e lentamente vou sentindo como anos antes a terra a tremer e o seu metal a rir-se. Ao chegarem á praça onde uma cruz de pedra se ergue com orgulho, todos os seus olhos estão postos em mim. Nova. Virgem. Pura. Mas, acima de tudo, uma bruxa como os aldeões me chamam. O banho com o líquido de cheiro a flores especiais que tomei hoje também ajuda a chamar a sua atenção. Vejo as suas salivas e as suas línguas a limpar os lábios cheios de terra ao olhar para mim. Mas, o capitão é o capitão, e ele sai do cavalo e caminha na minha direcção com a sua cruz vermelha bordada no seu manto branco. Olha e pega no meu cabelo cheirando-o. O orgulho que existe nos seus olhos é maior do que a sua barriga e o seu sorriso.
"É esta a bruxa de que vocês falam e choram de medo?" - grita ele para os aldeões que espreitam por entre janelas e portas.
Só consigo sorrir enquanto eles também se riem e gritam e me arrastam até ao descampado. O mais próximo que existe é claro, pois, a fome é grande de mais para ser contida por muito mais tempo. Sou despida à força pelas mãos do capitão enquanto os outros soldados uivam de prazer e de alegria. Os dentes podres crescem nas suas caras, assim como o músculo nas suas calças ao verem os meus seios expostos. Uma cruz é construída. Uma cruz invertida espetada na terra como me é digno de ter.
Invertida apenas para prender as minhas pernas afastadas em cada um dos braços da cruz. Isto não tem nenhum significado para eles. Apenas é mais fácil de me violar assim, enquanto desculpas se escondem na mente deles em nome da guerra santa. O capitão é o primeiro. Os risos. As palavras de vitória. As minhas mãos presas no poste principal da cruz cravam as unhas na madeira. Não gemo. Não falo, mas perco o sorriso. A minha mãe preparou-me bem, mas não tão bem assim. O capitão acaba, com a boca a babar-se nas minhas costas e a seguir a ele seguiu-se quem muito bem desejou.
A aldeia? Na aldeia as coisas não correram bem também.
"Seus pecadores. Pensam que eu não vos consigo cheirar, mas, eu consigo! Consigo cheirar o cheiro da bruxa em todos vocês." - Grita o Capitão.
Velhos morrem enquanto outros soldados bebem cerveja ao meu lado e me fodem ao seu belo prazer. Jovens rapazes, para os soldados que preferem algo diferente. No final, rapazes violados e chacinados com as gargantas cortadas, pois os mortos nada dizem. Mães e velhas atiradas aos cães. Aldeões. Vizinhos. Amigos. Bah, cuspo no vosso chão. Que ardam todos no inferno se ele existir como o vosso querido Deus diz que existe. Por todas as palavras, por todas as pedras, mas, acima de tudo, por nunca a terem ajudado.
A culpa reside neles e só neles.
Viva ao vosso Deus.
Os copos de cerveja batem uns nos outros durante o jantar, já depois de todo o sangue e sexo saciado. Consigo ver as suas sombras pelas janelas. Riem-se e comem. Canções e historias de outras guerras são cantadas. Para eles é como se apenas mais um dia se tratasse. De vez em quando, um dos soldados vem largar as águas e olha para mim aqui presa a sangrar e partida, onde esconde a vergonha por detrás de um sorriso maldoso e de uma palavra de insulto.
A noite vai acabando e aqui começa o fim do início da minha mãe. Agora é a minha vez de rir. O primeiro é o próprio capitão que cambaleia até cá fora com as mãos agarradas ao estomago e merda a sair da boca. Cai com os olhos a sair das órbitras ao tentar agarrar algum trago de ar. - "Morte a todos os cães do inferno"- digo eu a olhar para ele.
O dia começa a aparecer e sei que hoje é o meu último dia neste mundo. Que venha dai o próximo, pois este sempre me meteu nojo. Os soldados que me violaram, seguem-se ao Capitão. Os soldados com os seus olhos assustados pensam que é a comida e deitam-na fora. Mas não é a comida. Sou eu. É o meu interior. É o meu veneno. Perdidos, vão caindo como pardais. Alguns nem notam que morrem pois o vinho é tanto que nem voltam a acordar.
Contudo, um soldado, com uma espada na mão, que me culpa com razão pelo que está a acontecer tenta correr até mim passando por cima dos seus companheiros que vão morrendo lentamente no chão no meio da sua propria merda e porcaria. – “Bruxxaa...sua...tu...”- A dor que ele sente é demasiado, mas mesmo assim eu chamo por ele. Peço por ele. Insulto-o. O seu odio dá-lhe forças e finalmente consegue espetar a espada nas minhas costas que me fura de um lado ao outro. Engulo a minha última lufada de ar para saber que limpo este mundo de trinta e um demónios.
Cantem o meu nome de bruxa. Eu que vos matei a todos. Gritem o meu nome. Cantem o meu nome.

“I would have no compassion on the witches. I would burn them all.” Martin Luther
Texto por.: Daniel Lopes aka GodsHand
Imagem I por.: Desconhecido
Imagem II por.: Desconhecido. Tortura de Anna de Castro.
BTW.:
María Francisca Ana de Castro, chamada de La bella toledana (nascida a 1686, Toledo, Espanha, morrendo em 23 de Dezembro de 1736, Lima, Peru) era uma imigrante espanhola no Peru. Reconhecida pela sua beleza e charme. Foi presa em 1726 por ser uma praticante Judaica. Enganada pelo seu amante e presa durante 10 anos foi submetida a três grandes torturas acabando por morrer na estaca depois de um auto de fé. Na sua execução estavam mais de 10.000 espectadores que apoiaram até ao fim o castigo. Foi este evento que também levou ao inicio de rumores de irregularidades na inquisição.
Martin Luther (10 Novembro 1483 – 18 Fevereiro 1546) (algumas vezes conhecido como Saint Martin Luther) foi um padre alemão e professor de teologia que deu inicios á reforma Protestante.
5 comentários:
Os anos passam e por vezes esqueço-me como és dos artistas mais completos que tive o prazer de conhecer... mas estes pequenos pedaços tão teus, relembram sem a menor sombra de dúvida.
Beijo grande.
Nuchita
Como sempre irmão sem comentários.
Muito bom.
Poderoso e directo.
Continua assim.
Ok, em primeiro lugar, "Foda-se"! Passaram o dia a escrever histórias brilhantes vocês.
Um abraço e um sorriso,
M.
Tu já o sabes. Eu sempre soube desde o dia um. Apenas falta os outros também o verem e deixarem-te voar.
Como sempre...mais uma história daquelas, que me apetecia ler durante horas.
Amo tudo o que és!
Espectacular... e logo eu que gosto tanto de bruxas...
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