Religiões, magia, milagres, espíritos, monstros e preces. Este mundo agora místico ou sobrenatural em que tentamos viver parece estar cada vez mais próximo de nós. E há muito que eles nos disseram que já não somos bem vindos neste novo mundo.
O meu estado de sonho apenas me trouxe mais questões.
Mais dúvidas.
Uma parte de mim quer saber respostas do porquê desta tentativa de extinção da humanidade e de onde vêm os seres. Outra quer levar o resto dos sobreviventes a um porto seguro, se é que ele existe, mas, outra parte dentro de mim apenas quer deixar este mundo. Morrer e ter o meu descanso.
Tento levantar-me visto que aquela falsa Virgínia já não se encontra aqui. Já não sinto um peso sobre mim a forçar-me a estar sentado. Será que com quem estive a falar era o mesmo ser, o espectro que me pôs a mão no ombro e me sussurrou ao ouvido momentos antes de eu apanhar o tiro no peito. Será ela imaginação minha ou mesmo verdadeira. Já não sei distinguir nada nos tempos em que vivo.
Levanto-me.
Saio do quarto e caminho pelos corredores do refúgio.
Vejo as pessoas a rir, a festejar e a dançar como se nada tivesse acontecido. As suas roupas são diferentes. Estão limpas e repletas de imensos detalhes cravados em várias cores. Os cabelos das mulheres estão vivos, sem terra ou pó neles, tal como os seus olhos e as suas peles. Andam de mão dada e trocam carinhos com os seus amados.
As paredes e os corredores estão repletas de velas e incenso. Um vento morno viaja pelos corredores ao mesmo tempo que passam por mim duas crianças que brincam e gritam atrás de uma bola colorida. Ainda penso em dizer para elas fazerem menos barulho, pois é perigoso, que o barulho alto pode comprometer a nossa posição, o nosso esconderijo, mas rio-me logo de seguida com a minha estupidez.
Isto não passa de um sonho!
Nem uma visão acredito que seja, e isto não é o meu lado pessimista a falar. Apenas sei que estou a morrer, a perder sangue. Estou aqui, mas ainda sinto a bala alojada dentro de mim. Toco no peito e sei que eles ainda não a tiraram e que provavelmente nem a vão conseguir tirar.
Todas as pessoas por quem eu passo enquanto passeio pelos corredores cumprimentam-me e acenam-me, sempre bem dispostas e calorosas, como se nada tivesse acontecido. Sabe bem este momento, mas por outro lado também me assusta.
Passo pela área do lago, onde mulheres se banham nas águas frias com os seus peitos nus, ao mesmo tempo que lavam a roupa e limpam os alimentos. Falam umas com as outras do tempo lá fora. De homens e amores que não deram em nada. Do tecto, um cesto enorme desce por cordas cheio de alimentos frescos. Dois homens acenam-me da fenda da cave, agora limpa de raízes, enquanto seguram nas cordas do cesto. Dentro do cesto um gato pequeno e gordo lambe o pelo e cheira a comida. Uma das mulheres ao ver o gato pega nele e leva-o ate terra seca. O gato abana o rabo enquanto mia, fugindo logo de seguida.
Já não via um animal desde o dia dos ataques.
Volto aos corredores e reparo que as palavras de Virgínia já não existem pintadas nas paredes. Este sonho está a ser demasiado perfeito.
Imagino-os a tentar reanimar-me e a fazer de tudo para tirar a bala dentro do meu peito. Não quero que eles sofram com a minha morte, mas também não quero voltar. Não quero mais dor, mais guerras ou mais sangue.
Caminho em direcção ao meu quarto e por entre a cortina que serve de porta vejo duas silhuetas. Uma mulher e uma criança. Afasto a cortina e fico a olhar enquanto alegria me enche a alma.
São elas.
A minha bela mulher com os seus lábios perfeitos e a minha perfeita filha com os seus belos olhos, que brincam uma com a outra a tentar escolher brincos dentro de uma caixa velha de madeira. Os brincos brilham tal como os seus risos. Elas vestem o mesmo tipo de vestidos que as mulheres daqui. Perfeitos, coloridos, compridos e simples.
Sinto uma dor no peito que me faz tossir.
A minha esposa olha para mim e levanta a mão para eu me aproximar.
Chama por mim.
Eu caminho, mas a dor no meu peito aperta. Não quero parar. Dou um passo e tento agarrar a sua mão. A minha filha senta-se na cama e diz o meu nome. Para eu me deitar na cama e ajudar a mãe a escolher uns brincos bonitos para a festa de logo à noite.
Não sei que festa é, mas quero ficar para descobrir. Não as quero deixar...
Perco as forças nas pernas e caio de joelhos. Tento-me arrastar.
Tudo roda.
O meu peito aperta ao ponto de explodir. Grito com a dor.
Eles encontraram a bala.
Volto à realidade a gritar.
Olho e vejo Jorge com dois pedaços de ferro dentro da minha ferida a tentar retirar a bala enquanto murmura para eu me aguentar. Sofia e Miguel juntamente com os dois guardas que ajudaram a carregar-me, seguram-me no corpo. Eu abano-me e grito com a dor. Sinto as lágrimas de Sofia a caírem-me nos olhos, que passam a ser minhas.
Os ferros ardem dentro de mim e eu olho para Jorge. Olho e rogo para que ele me deixe ir. Para que ele me deixe ir ter com a minha mulher e filha, mas, ele cerra os olhos e puxa os dois ferros e de dentro de mim eu vejo um pequeno pedaço de ferro dobrado a sair.
O aperto no peito desaparece para dar lugar a uma nova dor e a minha garganta se encher com sangue. Todos pegam no meu corpo e inclinam-me para eu não me sufocar com ele. Eu tusso e cuspo, enquanto Jorge tapa a ferida e faz pressão nela.
Deitam-me novamente e fico a olhar para as cabeças à minha volta, que chamam pelo meu nome, que dizem para eu não desistir ou adormecer.
Vejo Virgínia no meio delas e, como se seria de esperar, ela sorri. Peço para ela me levar de volta. Para ela me levar deste mundo, mas ela apenas faz sinal com o dedo nos lábios para eu não fazer barulho.
Olho para Jorge e ele molha um pano em água fresca para limpar a ferida e por novos panos limpos sobre ela. Com as minhas últimas forças agarro o seu braço e fito-o. Por detrás dele vejo novamente aqueles pós brilhantes a flutuar, que vão formando símbolos e círculos onde do meio deles Teresa aparece tal como desapareceu. Com as suas asas negras e o corpo envolvido num pano branco que flutua à volta dela sem lhe tocar, servindo apenas para esconder as suas partes íntimas ela voa na minha direcção. Levanta o braço e com a mão segura uma espada em chamas apontando-a na minha direcção.
“Morre e vive novamente, mortal!” - Grita como se gritasse com todas as vozes do universo.
Sinto a espada a cravar-me na carne e tudo arde. Os meus olhos. A minha boca e as minhas mãos. Olho para a ferida e caio para trás. Viver novamente?! Não quero...
Só quero estar com elas... Viver onde elas estiverem. Procuro pelo anjo com o corpo de Teresa.
“Não te atrevas a trazer-me de volta... Não te atrevas!” - penso eu na sua direcção.
Cerro os punhos e tiro prazer no meu último suspiro.
Sofia bate freneticamente no meu peito e chama por mim, mas sem resposta.
Sinto-me a ir...
Jorge aproxima a sua mão fechando-me os olhos.
Tudo fica escuro.
Morro.
"Nunca mais voltar
È o que torna a vida tão doce."
Emily Dickinson
Poema número 1741
Texto por.: Daniel Lopes
Imagem por.: Hoon
Vemo-nos no capitulo III ;)
1 comentário:
Vou ter de voltar a ler os capitulos I e II...! :)
Enviar um comentário