
De que surgirão heresias novas, temos a profecia de Cristo; mas de que antigas serão destruídas, não temos nenhuma predição.
Thomas Browne – Religio Medici, I, 8 (1642)
Olhai e recordai. Olhai para este céu;
Olhai profunda, profundamente para o limpo ar marinho,
O ilimitado, o término da prece.
Falai agora e falai para a sagrada abóbada.
Que ouvis? Que responde o céu?
Os céus estão ocupados; esta não é a vossa casa.
Karl Jay Shapiro - Travelogue for Exiles.
Capitulo II
Feridas na Babilónia.
Custa-me respirar.
Vejo o chão e sinto a terra a entrar-me pelas narinas. O cheiro a terra, o sabor dela na minha boca, na minha língua que me torna a boca seca. Com esforço foco o meu olhar já enublado em Sofia e no Jorge que chamam pelo meu nome. Parecem estar a gritar, mas não consigo perceber.
Tento fechar os olhos. Só quero adormecer. Só quero partir e deixar esta merda de mundo para trás, mas, eles não me deixam. Chamam por mim e levantam-me o que me faz olhar para o meu próprio sangue.
Jorge e dois guardas que conseguiram sobreviver pegam em mim. Jorge nas pernas e os guardas no meu tronco e braços. Gemo com a dor, mas deixo-me ir. Com a cabeça caída para trás vejo aos solavancos Sofia com as mãos agarradas ao seu caderno e o desespero agarrado na sua face.
Ela diz-me que tudo vai correr bem e a minha cabeça cai e os meus olhos reviram.
Não consigo ver onde está Miguel.
O meu sangue vai marcando o caminho com as suas gotas. Passamos por cima do corpo de Virgínia e até ela fica marcada. A minha faca espetada no seu peito.
Reparo na sua face. Ela sorri e os seus olhos continuam totalmente abertos. Aquele olho vermelho fita-me e eu desmaio por momentos.
Vejo a minha mulher e a minha filha a acariciar-me a cara. O cabelo e a barba. Dizem que me amam e eu não consigo responder. Elas abraçam-me e eu sinto-as quentes como uma tarde de Verão no meu corpo. Quero ir ter com elas. Quero flutuar e voar como elas, voam ao meu lado. Tão belas. Tão perfeitas.
Como eu sinto a vossa falta.
Acordo.
Um dos guardas olha para mim e pega melhor no meu tronco. Estamos já a entrar na casa. Ouço o arrastar da mesa e descemos em direcção aos túneis. Tusso e sangue invade-me a garganta. Jorge grita e inclina-me. Cuspo o sangue para o chão.
Ouço-o a rogar-me ao ouvido para eu me aguentar. Para não desistir, mas, desistir é que eu desejo meu bom amigo.
Desmaio novamente.
Vejo Virgínia no seu quarto com as suas vestes. O quarto repleto de velas e incenso pousados nas prateleiras de madeira montadas nas paredes de pedra. Ela sorri para mim e diz-me para eu entrar e sentar-me. Já não tem a mutação na cara e parece-me mais nova. Sento-me em cima de uma almofada no chão e ela oferece-me uma chávena de chá. Aceito sem saber porquê. Ao olhar para o meu reflexo na água do chá reparo que não tenho a pala e o meu olho está bom.
Infelizmente isto não passa de um sonho.
“Será mesmo apenas um sonho isto Cássio?” - Pergunta-me Virgínia como se estivesse a ler o meu pensamento enquanto acende mais uma vela.
“Nem comigo a morrer me deixas em paz velha?!” - Respondo eu a sorrir e a passar a mão pela minha face a sentir o meu olho bom. Não sinto raiva nem vontade de a esganar. Isto não passa de um sonho, por isso mais vale aproveitar enquanto consigo. - “Sabes Virgínia, preferia estar a sonhar com a minha filha e a minha mulher do que contigo.”
“Sim, compreendo. Mas, os sonhos, a morte e a vida nunca o são como queremos e desejamos. Por isso, acho que ainda vais ter que passar mais uns momentos aqui comigo.” - Ela pega num livro e folheia-o. Vai murmurando palavras e olhando para mim.
Dou um gole no chá e ele sabe mesmo a verdadeiro. O incenso cheira mesmo a incenso e a almofada pôs-me mesmo confortável. O quarto está quente. Olho para ela, e parece que já não consigo ver nenhuma ruga na sua pele. Dos seus lábios começa a sair um cântico e vindo do nada sons de instrumentos aparecem. Violinos e pianos que se misturam com a sua voz.
Sinto-me a cair.
Estou a morrer...
“Estás a morrer Cássio, mas isso não quer dizer que o teu tempo já acabou.” - Diz-me ela enquanto a música não pára. Como se tivesse sido sempre outra pessoa a cantar neste tempo todo. - “Não sabia mas já o tens dentro de ti...”
“Tenho o quê dentro de mim?” - Pergunto pousando a chávena de chá. Olho para as minhas mãos e noto que delas saem pequenos pedaços de pó brilhantes que fluem e viajam sem motivo aparente. Sigo-os e eles iluminam o quarto criando símbolos em forma de círculos no ar. O símbolo da vida eterna.
Ela pensa na minha pergunta e parece meditar sobre ela - “Isso não te posso responder. Como deves compreender eles não me deixam...” - Fixando os olhos em mim e sorrindo. Tão inocente o seu sorriso que me faz acreditar nele.
“Eles quem Virgínia?” - Ela vira a cara com a minha pergunta e volta a pousar o livro. A música vai-se afastando. Passa as mãos pelas pernas e levanta-se.
“Pára de me chamar Virgínia. Não gosto do nome, e ela já cá não está Cássio.” - Caminhando em direcção á saída do quarto. Ela afasta uma das cortinas que serve de porta ao quarto e eu tento levantar-me para a seguir, mas não consigo. Fico a olhar para ela enquanto ela sai arrastando pelo chão as suas vestes brancas.
“Quem és tu?” - Pergunto mesmo antes de ela sair.
“Não te quero assustar Cássio.” - Responde-me ela parando e olhando fixamente para mim.
Desenho por.: Daniel Lopes tirado do Caderno de Sofia representando Cássio ferido.
Texto por.: Daniel Lopes.
1 comentário:
Ao longo da história tenho criado na minha cabeça uma imagem de cada uma das personagens, do Cássio, de Virgínia, da Sofia( aqueles que mais curiosidade me têm despertado).
Teres mostrado uma das páginas do caderno da Sofia e descurtinares a imagem de Cássio foi sem dúvida uma grande surpresa.
Gostei muito! :)
" Vejo a minha mulher e a minha filha a acariciar-me a cara. O cabelo e a barba. Dizem que me amam e eu não consigo responder. Elas abraçam-me e eu sinto-as quentes como uma tarde de Verão no meu corpo. Quero ir ter com elas. Quero flutuar e voar como elas, voam ao meu lado. Tão belas. Tão perfeitas."
Adoro esta passagem! :)
ps: Mas então se aquela não é a Virgínia. Quem é ela? :)
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