
Deixo para trás este infeliz acontecimento que só me faz cada vez mais desistir de tudo. Só não desisto de tudo e enfio uma bala na cabeça porque a caminhar até ao meu quarto passo por dezenas de pessoas e familias inteiras que dependem de mim e do conselho que criámos. Olho nos olhos de uma criança e vejo neles a sua vontade de sair desta gruta para caminhar e brincar ao ar livre novamente. Mas em vez disso tudo se vai apenas tornando numa memória envolta em recordações de morte e lágrimas. O casal que o rodeia serão mesmo os seus pais verdadeiros ou apenas um casal que o adoptou?
É em momentos de desespero, de dor, que o Homem mostra o seu melhor ou pior lado. Raspo a minha mão na parede da caverna e por momentos esqueço o que acabou de acontecer. Esqueço a família que perdi e agradeço a alguém pela sorte que tivemos em encontrar, entre os que sobreviveram, alguém com experiência em construção e alicerces. Foi o que nos permitiu manter esta gruta de pé. No terceiro ano de construções onde muitos de nós morriam de sede e doença enquanto não conseguiamos parar de escavar por algum motivo fora do nosso entender, encontrámos um rio subterrâneo que criou ali um lago de água pura e cristalina. No passado, antes dos ataques, já tinha visitado as grutas e lagos de Alvados no antigo conselho de Porto de Mós, que são por si só magnificos, mas não se consegue comparar à imensidão e beleza destas.
Foi uma das imagens mais bonitas que já vi em toda a minha vida. Quando entrámos, a luz das lâmparinas e das tochas brilhava e reflectia na água límpida. Os homens caíam ao chão com as mãos nos rostos a chorar. O barulho da corrente dançava nos nossos ouvidos. Todas as cores verdes, castanhas e amarelas enchiam-nos o olhar e a alma naquele momento, único e eterno, gravado nas nossas mentes.
Esse dia, foi sem dúvida um marco, e nesse mesmo instante nasceu o concelho e a decisão de construir um asilo com a sua ordem e paz á volta deste local belo e perfeito. Comigo somos oito no total, mas como já pensei várias vezes, vejo Vírginia como uma praga e uma ameaça ao que resta da nossa humanidade.
Ao chegar ao meu quarto atiro-me para cima do sofá. Descalço as botas e suspiro. Pego num copo meio sujo e numa garrafa de malte que guardo para aqueles dias menos bons e encho-o até meio. Ao beber vou fechando os olhos e tudo passa diante deles como se fossem flashes. A terra fértil que trouxemos lá de fora para tentarmos cultivar vegetais, os animais de gado que conseguimos resgatar nos montes e o sacrifício que fizemos em não os matar e os comer naquele mesmo momento. Como esperámos, como tratámos deles para se reproduzirem até se tornarem numa boa fonte de alimento.
Acabo de beber e pouso o copo no chão. Levanto-me para cair automáticamente na cama. Fecho os olhos e ao longe muito suavemente ouço cânticos em forma de oração pela alma da Teresa. Sinto os passos suaves daqueles que ainda caminham e que acendem velas por ela. Tudo se vai desvanecendo até adormecer.
Amanhã temos o funeral da criança e com ele vem a Vírginia.
Continua...
Texto por.: Daniel Lopes
Final da Página IV.
Imagem por.: George Wasses de as Minas de Alvados
2 comentários:
A partilha dos momentos de silêncio, quando os dois na mesma divisão da casa escreviamos o que nos ia na alma e na cabeça...os momentos em que, quando dava por mim, te olhava com admiração sempre em silêncio para não te interromper o pensamento...o momento em que me pedias para ler o que tinhas escrito no papel com a tua caneta preferida...
Todos esses momentos são muitos especiais!
Acredito no teu talento, seja a escrever, seja a desenhar ou a pintar, simplesmente acredito e estarei sempre ao teu lado, onde quer que isso seja.
Continua. Eu vou sempre ler as tuas histórias, opinar e corrigi-las contigo, sempre!
Adoro-te!! *
A imagem é perfeita! : )
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