terça-feira, 26 de agosto de 2008

Capitulo I, pag II e III

Lá fora tudo se encontra desfeito, queimado e destruído. Os corpos que haviam espalhados pelas ruas há muito que desapareceram. Comidos e arrastados por eles.
As casas, o Palácio da Pena, a beleza da terra e tudo que outrora foi Sintra transformou-se em cinzas e pó em segundos.
Por mais sol que esteja durante o dia, agora, o que eu vejo não é mais do que um cenário cinzento e escuro.

A noite aproxima-se.

Deixo para trás a janela e o inferno que a paisagem me dá e caminho até ao andar de baixo. Afasto uma mesa no meio dos destroços e levanto o alçapão. Este pedaço de metal é tudo o que nos separa deles.
Entro até meio do corpo, para conseguir pôr a mesa de volta no mesmo sitio. Desço as escadas de pedra e entro na cave da casa. Esta parte não foi sequer tocada pelos seres. Foi aqui que nos mantivemos durante quase um ano. Nessa mesma altura, começámos a construir o asilo, enquanto iam chegando mais sobreviventes. Lutávamos contra os seres que captavam o nosso cheiro ou apenas o barulho. Já não tenho conta de quantos matámos, nem de quantos perdemos, mas, sei que começámos a recear tudo à nossa volta. Até uma pedra se podia tornar num ser em forma de criança com asas negras e foices na mão.
Não era a primeira vez que tal acontecia, e com isso, muitos perderam a vida.

Com o punho da faca que tenho no meu cinto dou duas pancadas na porta de metal embutida na parede que dá para o asilo e automaticamente ouço do outro lado sussuros de vozes seguido por um carregar das armas.
Os guardas são novos. Só chegaram há cerca de duas semanas. Depois do que eles devem ter vivido e visto lá fora, nao me supreende minimamente o nervosismo que eles emanam.
Antes que as coisas evoluam digo o meu nome.

Silêncio.

A porta abre-se.
Entro sem cumprimentar os guardas. Eles também não o fazem. Creio que nos habituámos facilmente ao silêncio, talvez mais pelo medo de os atrair até nós. Afinal de contas, muitos de nós começaram novas familias aqui dentro, e, com familias vem o dever de as proteger acima de tudo. Melhor do que eu protegi a minha.
O asilo começa por um corredor estreito todo revestido em cimento, onde lâmpadas penduradas no tecto dão uma luz fraca mas suficiente. Nas paredes, frases e textos escritos a vermelho anunciam o fim do mundo. Aquele, que acredito já ter chegado.

Depois dos ataques ninguém aqui falava em religião, Deus ou salvação, porque uma coisa era certa, todos nós sentiamos isto como o julgamento final.
Deus fechou os olhos e adormeceu no seu trono, deixando-nos à mercê da morte, e a morte jubilou sobre o nosso sangue. Agora dança, matando e apanhando quem ainda luta pela sua existência. Isto é, se existe mais alguém para além de nós.
Agora, depois da chegada de Virginia, tudo mudou.
Virginia é uma mulher de cabelos negros, magra, cujos ataques a tornaram cega. Uma luz brilhante cuspida da terra assaltou-a, disse ela. Conseguiu chegar cá trazida por dois batedores do nosso grupo que a encontraram estendida, nua e ferida, no meio do Convento dos Capuchos.
Desde que chegou, começou a sofrer de pesadelos onde acordava a gritar. Depois dos pesadelos começaram os murmúrios e as escritas na parede.
Visões, grita ela.
As pessoas começaram a ouvi-la e o fanatismo começou a instalar-se. Primeiro criaram um altar, depois vieram as missas cada vez mais frequentes, até que se começou a instalar o boato de que um simples toque da mão dela, pode criar ou curar doenças.
Ela agora vive num quarto privado na última secção da cave, envolta em panos e velas. Todos os dias recebe cada vez mais crentes e mais oferendas.
O poder dela sobe, e o meu e o do conselho diminui.

O corredor vai dar à primeira área aberta do asilo. É aqui que instalámos a primeira barreira da nossa defesa, onde trabalhamos e fazemos armas ou apenas utensílios para o dia a dia. O calor aqui com as fornalhas é inacreditavel, mas admito que a proporção que este asilo tomou em apenas oito anos é de admirar.
Perco-me a olhar para todos estes homens que trabalham sem parar como se a próxima faca ou tacho que criam, fosse a resposta à salvação que procuram.

Ouve-se um grito.



Texto por.: Daniel Lopes

Continuaçao do Primeiro Cápitulo, apresentando as páginas 2 e 3.

1 comentário:

Angelus disse...

O fim do mundo chegou e passou e ainda assim as pessoas pocuram desesperadamente agarrar-se à salvação da alma em vez de primeiro se dedicarem a salvação do corpo...
Deus abandonou Sintra e o mundo e ainda assim alguém encontra a falha humana que nos leva a acreditar que existe uma força superior que nos vai salvar.
Serão as visões de Virginia reais ou apenas fruto de uma mente enlouquecida por tudo o que se passou?
Aguardo a próxima viagem a Sintar para descobrir...
Enquanto não nos levas lá fico pelo Porto sem perder a esperança de que seremos salvos do inferno que se instalou na terra...