
A noite caiu cedo hoje. Ao olhar para o céu, a Inspectora Rodrigues morde o lábio ao notar que ia ser mais uma noite sem estrelas. Mal tinha começado o seu turno quando recebeu uma chamada para se dirigir com urgência para uma casa meia a cair na terra dos seus pais que já à muito faleceram. Esta casa era apenas mais um local de crime para ela. Uma casa ao fundo de um caminho repletos de silvas e ervas daninhas que lhe davam acima do joelho. Com ela estava, como já era habitual, o Inspector Lopes. Um homem grande com a barba mal cortada, braços que pareciam dois troncos e uma barriga que já se começava a notar pela camisa. Os seus olhos eram claros e penetrantes e não havia homem melhor para questionar a escumalha. Era só uns minutos na sala de interrogação e eles quebravam sempre. Era a qualidade que mais gostava naquele homem.
Rodrigues já não se lembrava o porque de ter entrado para a força policial ou como chegou até inspectora, mas, não lhe interessava. O que desejava era apanhar o máximo possível de homens e mulheres más antes de morrer. Desprezava quase tudo e quase todos, desde pequena que via tudo um bocado no preto e branco. O cinzento para ela, apenas trazia-lhe confusão. Claro que tinha muitos esqueletos no seu armário, mas não ia ser agora que os ia revelar.
Dois polícias guardavam a casa e falavam com a mulher com aspecto cadavérico, toda vestida de preto com o cabelo cinzento puxado para trás que supostamente descobriu os corpos dentro de casa. A casa já estava a ser assaltada por ervas e pequenas árvores, a tinta da casa já não existia e a madeira das portas e janelas foi arrancada. Uma típica casa abandonada desta zona. Rodrigues lembrava-se de ter brincado em muitas quando era pequena ou de ter perdido a virgindade numa praticamente igual a esta para o seboso do Carlos.
Ao passar pelos dois polícias quase não olha para eles mas acha estranho a velha não aparentar qualquer sinal de medo na face. Ao subir o primeiro degrau sente o cotovelo do Lopes contra o seu que lhe oferece de seguida uma mascara. Ela agradece de bom grado pois cheiros são algo que ela não suporta. Ela acredita piamente que não consegue manter nenhuma relação porque descobre sempre algum cheiro que abomina nos seus amantes.
“Vamos lá ver o que temos aqui então.” – Diz Lopes ao entrar dentro de casa apenas iluminando o seu caminho com uma lanterna. Rodrigues liga a sua também.
“A velha tinha que encontrar os corpos durante a noite, não podia ser durante o dia e tornar isto mais fácil pois não?” – Pergunta Rodrigues ao seguir atrás dele na casa.
“Desde quando é que alguma vez é fácil…” – responde Lopes e ela não tinha resposta para ele.
O ar dentro da casa estava abafado, quente, e isso devia-se exclusivamente à decomposição que existia dentro de casa. Ao entrarem dão logo de caras com um corredor sujo com o papel de parede manchado pela água e já inexistente em muitos sítios. As lanternas mal iluminam alguma coisa mas mesmo assim prosseguem. O corredor percorria a casa até ao fundo mas antes havia duas portas uma de cada lado. Uma dava para uma sala grande apenas repleta de lixo e queimada no meio. Uma fogueira pelo aspecto. Com um olhar rápido não reparam em nada de importante. A outra porta dava para outra sala que tinha alguns livros já podres espalhados pelo chão. Com o pé Rodrigues mexe um pouco neles. Uma marca sem pó fica no lugar deles. Não, nunca ninguém mexeu neles recentemente, pensa para com ela própria. Continuam o corredor até ao fim da casa para entrar na cozinha antes de subirem as escadas à sua esquerda.
O que era antes a cozinha, agora é um talho. O primeiro corpo. A primeira coisa que Rodrigues vê é um braço cortado que tem um rasto de sangue até ao resto do cadáver. Um homem. O corpo estava encostado a uma parede meio sentado. Os olhos fechados com o queixo virado para baixo. O braço tinha sido cortado mesmo pelo ombro e sangue escorria dele.
“Olha para o sangue Lopes. Não o mataram há muito tempo…”
“Não o mataram Rodrigues, vês mais algum ferimento? Cortaram-lhe o braço e deixaram-no o morrer.”
Sim, ele tinha razão. Ao aproximar-se do corpo com cuidado para não calcar o braço ou o rasto de sangue ela nota automaticamente que só o braço tinha sido cortado com violência. Alguma força considerável foi usada. Afinal o homem não era propriamente pequeno. O homem estava de tronco nu e alguma coisa foi escrita no peito. Com a lanterna mais aproximada consegue ler o que estava escrito.
“Ri-te agora.” – Repetiu a inspectora em voz alta – “que raio Lopes…”
“Essa mensagem é para nós ou para ele?”
Rodrigues começa a observar o resto do lugar. Nada. Apenas azulejos antigos, sujos e esta carnificina. Questiona-se como é que a velha estava tão serena depois de ver isto. Nem móveis, nem garrafas de cerveja, nada de nada. Só o raio do braço e o corpo mutilado. Isto não foi aleatório. Volta a agachar-se perto do corpo. Tudo isto contém uma mensagem senão porque o trabalho de deixar frases cravadas no corpo?
“Ainda existem mais?” – pergunta ela ao Inspector Lopes.
“Pelos vistos sim, mais dois pelo menos. Lá em cima pelo que me informaram.”
“Estas a dizer-me que a velha, vem aqui ao meio da noite ao que ela chama passear, entra dentro desta casa abandonada, encontra este cenário e ainda tem coragem de ir ao andar de cima ver o ambiente?” – Fixa a lanterna novamente no braço – “Não é estranho ela estar lá fora tão serena?”
“Não sei que te diga Rodrigues, pode ser uma velha dura e curiosa. Sabes que existem muitas assim por esta zona.” – Lopes aponta a lanterna para a cara dela – “só se quiseres falar já com ela enquanto esta fresca na cabeça, mas parece-me uma ideia muito remota que ela tenha alguma coisa a ver com isto.”
A luz cegue-a.
“hey, Otário tira a luz da minha cara…” – Tentando tapar a luz com a cara virando-a para o lado.
Mas antes de conseguir dizer mais alguma coisa um pontapé é espetado na sua cara. Sente automaticamente dois dentes a ceder. A lanterna voa pelo ar, mas o treino sobe ao de cima e a Inspectora Rodrigues saca logo da pistola apontando ao seu atacante mal cai no chão de barriga para cima.
“Lopes… que… “ – arrancando a mascara da cara cospe um punho de sangue para o chão – “que merda é esta?” – ela treme por todos os lados. Não compreende o que lhe esta a acontecer.
Mas o Inspector já não esta na cozinha. Já não consegue ver a sua lanterna. Apenas a sua esta ligada caída no chão juntamente com ela e com aquele cadáver.
“Lopes, onde é que estas?” – grita – “isto é alguma brincadeira? Quando te encontrar vou-te por uma bala no meio da testa meu cabrão…”
“Ri-te agora, puta!” – A voz dele vem de longe, mas ainda dentro de casa.
Ela levanta-se e apanha a lanterna apontando a luz á entrada da cozinha. Ela sabe que isto não é nenhuma brincadeira de mau gosto. Sabe que a levaram até ali para a matarem. Ainda não sabe o porquê mas sabe agora a resposta ao porquê de a velha estar tão relaxada e sem medo. Ela não viu este corpo. Os dois polícias lá de fora estão metidos nisto e provavelmente pagaram à velha para estar ali com eles. Um teatro… não passa tudo de um teatro para a matarem. Todo o seu corpo treme.
“Porquê que estas a fazer isto Lopes?” – atira a pergunta ao ar ao mesmo tempo que se aproxima da porta de saída da cozinha espreitando para o corredor com a luz apontada.
“Coelhinho… coelhinho…” – esta voz não é do inspector Lopes. Tem que ser um dos polícias lá de fora. A voz dele vem também dentro de casa. Vem do andar de cima. – “Anda cá coelhinho.”
Na saída da cozinha existe logo umas escadas que dão para o primeiro andar. Ela sabe que não pode sair calmamente. Que o mais provável é estar alguém no topo das escadas. A sua respiração é acelerada e o que mais lhe irrita é de não saber donde vem ou o porquê deste pesadelo todo. Tem que correr. Se quer sair viva da cozinha tem que correr.
A inspectora agarra com mais força a arma e sai da cozinha a correr, disparando dois tiros para o andar de cima. Tiros são disparados de volta na direcção dela, mas nenhum lhe acerta. Ela não sabe para quem ou para o que é que disparou mas tinha que distrair quem quer que estivesse no topo das escadas enquanto corria. Pára no meio do corredor e sabe que tem duas portas antes de sair lá para fora.
“Eu não vou cair assim com tanta facilidade meus cabrões!” – Grita para a casa toda.
Como resposta recebe risos de mão dada com eco. Nesse momento um frio sobe pelo seu corpo todo. Começa a pensar na sua vida. Como esta sozinha, como nunca teve ninguém, como nunca amou nada.
“Sabes ao que faziam a mulheres como tu antigamente?” – A voz é do inspector Lopes, mas Rodrigues não consegue perceber de onde vem – “Cortavam a cabeça, mergulhavam em petróleo e espetavam-na no topo das muralhas. Tu não mereces ser quem és. Não és nada. És apenas um cão” – Vozes a imitar cães a uivar e a ganir vem do topo da casa.
Milhares de pensamentos correm a sua cabeça. Nunca ninguém na esquadra mostrou indícios de não gostar dela, ou era ela que tem andado distraída? Sim, ela sabe que o álcool tem tomado um papel importante na sua vida, mas não consegue pensar num único momento que insultou ou deixou mal visto alguém.
“Porquê que estão a fazer isto?” – Grita a Inspectora já em desespero verificando novamente o carregador na sua arma.
Nenhuma resposta chega durante uns segundos que mais parecem séculos. Ela sabe que se não fizer algo e rápido não vai conseguir sair dali com vida.
“Ri-te agora!” – é a única resposta que ela recebe e desta vez das três vozes.
“Vejo-vos no Inferno então.”
Pega na arma e corre novamente pelo corredor. Ao aproximar-se das portas que dão para as salas paralelas antes da saída, salta e atira-se de cabeça lá para fora. Vê por segundos, um dos Policias na sala onde estavam os livros velhos. Vê o sorriso negro na cara do homem. Sente pela primeira vez medo de verdade. Mal cai no chão levanta-se e começa a correr para fora da casa, tropeça por segundos no corpo da velha que jaz no chão com o pescoço cortado, mas tenta não pensar e apenas corre. Sabe que não esta a correr na direcção de onde estacionou o carro, mas, não pode parar. Só pára junto de uma árvore, escondendo-se atrás dela. Desliga a lanterna para não mostrar a sua posição e fica parada a ouvir. Pensava que tinha corrido mais, mas o mais provável é ter corrido em curva porque consegue ver perfeitamente o telhado da casa daqui.
Ouve um barulho nas suas e vira-se apontando a arma.
Uma arma está apontada de volta a ela. É outro polícia, um diferente. Não o conhece. Nunca o viu. Eles eram apenas três pensa para com ela.
“Se pensaste por algum momento que somos só aqueles que viste na casa estás muito enganada, minha querida” – diz o Policia ao sorrir para ela – “agora baixa a tua arma e sê um lindo e obediente cãozinho…”
“Nunca gostei de cães… nem de ser tratada como um…” – responde a Inspectora tentando procurar coragem em algum lado. O Policia tinha os olhos negros que ficavam estranhos no seu cabelo loiro. – “Agora baixa tu a tua antes que eu te arrebente com os miolos.”
“Isso não vai acontecer…” – Piscando-lhe o olho.
A inspectora atira-se para o chão, metendo uma bala mesmo na barriga do polícia. Como previu o homem disparou em frente, e é por isso que fez cair o corpo no momento que disparou. Ele caiu automaticamente no chão, mas não morto, apenas agarrado à dor. Ela podia ter acabado com ele ali mesmo, mas, sabe que o barulho indicou a posição dela, por isso decide correr novamente.
Ainda mal tinha dois passos sente uma pancada no meio da cara. Tudo explode na sua cabeça. Não larga a arma mas um pontapé é pregado na barriga. Cai no chão e tenta-se proteger dos golpes, mas eles são demasiado fortes. Tenta apontar a arma e disparar mas sem sucesso. Mais um pontapé no meio da cara. Começa a sucumbir ao desmaio, mas os golpes param.
“Não desmaies agora… ainda tens que te rir para nós.” – A voz é do Lopes. Ela tenta olhar para ele, mas vê tudo distorcido.
“Porquê… não percebo…” – consegue dizer por entre o sangue que lhe sai da boca.
“Matea-a! Mete essa vaca de uma vez!” – é o homem agarrado ao estômago que grita. Consegue perceber que esta a entrar em choque. – “Disse… mete-a!”
“Oh por amor de deus, morre de uma vez” – Lopes dá um tiro no homem – “Nem a matar um único palhaço consegues fazer bem Raquel…” – Aponta a arma agora a ela.
Ele nunca a tinha chamado pelo nome próprio.
“Porquê? Lopes…” – pergunta novamente. Só quer saber porquê.
“Raquel, a verdade é que já fazemos isto à muito tempo… já matamos muitos e de maneiras completamente diferente. Digamos que é o nosso desporto semanal. ” – Mesmo sem conseguir olhar para ele, consegue sentir o seu sorriso. A sua maldade que a agarra como tentáculos.
“Mas… porquê eu?”
Ele agacha-se e pega na face dela e olha fixamente para ela. Ela só consegue ver morte nos olhos claros dele.
“Respondo-te na próxima vida.”
Texto por.: Daniel Lopes
Imagem por.: Desconhecido - 1934 - Força Policial em Hudson.
BTW.: Pellers foram a primeira força Policial do Mundo em 1829. Citando.: "They became known as 'Peelers' and 'Bobbies' after their founder, and wore a dark blue longcoat and a tall hat which they could use to stand on and look over walls. Blue was chosen because it was the colour of the popular Royal Navy rather than red which was the army's colour and struck fear into the people because of the way soldiers had been used to smash protests. The only weapon was a truncheon."
Este texto vem em nascimento com o Tema V que é Crime e Assasinos. Podem ler a versão do Angelus no blogue dele que eu recomendo vivamente.
Obrigado a todos que estejam a ler isto semanalmente. Gosto de acreditar que vens ler mas não comentas. É isso mesmo que me faz continuar. Obrigado.