
Ao chegar a casa depois de uma noitada de conversa e álcool reparo num aglomerado estranho de folhas presas debaixo da porta do meu apartamento. Apenas presas com uma corda meia larga noto automaticamente na escrita torta e sujidade que as folhas têm. Ignoro o resto das cartas de contas e entro dentro de casa. Que raio é isto afinal?
Fecho a porta com pé e caminho até ao sofá deitando-me para esticar as pernas. Deus… que dores…
De barriga para cima tiro a corda que prendem mal as folhas e vou folheando-as aleatoriamente. Até que me cai um post-it meio dobrado no colo.
Abro e leio – “Para quem estiver interessado em ler.” – Bolas, isto é estranho.
Porque deixaram isto aqui para mim? Terá sido engano? Afinal não sou escritor nenhum. Conheço dois escritores, o Miguel e o Daniel, mas eu não o sou. Bem, para ser sincero acho que eles são mais pseudo escritores do que outra coisa… eles que se fodam.
Olho novamente para as folhas e algo me prende na primeira frase,
- O meu nome é aquele que tu quiseres que seja. Tenho 13 anos e vivo há mais de 4 na rua, por isso, se és daqueles que logo de inicio não se vai acreditar nas minhas palavras, pensar que isto é tudo uma treta ou que o que vou contar nunca aconteceria na tua cidade, pensa novamente e acorda para o mundo que te rodeia. É só olhares pela janela.
Sim, sei escrever e vivo na rua. Que fascinante, não é? É tão fascinante para mim como universitários formados escreverem muito pior do que eu.
Eu, apenas uma merda de miúda da rua.
Limpo os vidros dos vossos carros com água e sabão. Tento fazer de conta que vos ajudo a estacionar carro, á procura de uma moeda para comer quando a fome de comida é maior do que a fome de droga, mas, acima de tudo tento roubar tudo que posso.
Pensem nisto e tentar interiorizar por favor, eu… tenho… treze… anos. Não perceberam? Ok. Eu explico melhor. Aos nove anos a minha mãe já ia no seu décimo terceiro e muitos namorados desde que o meu Pai nos deixou, e, esse novo namorado entrou no meu quarto uma certa noite excitado por causa do meu cabelo loiro. Imaginem o resto se já tiverem visto os C.S.I suficientes. No dia seguinte a chorar , contei à minha mãe o que tinha acontecido e ela, como resposta, chamou-me de cabra mentirosa e pôs-me na rua. Bati na porta e pedi desculpa por algo que não tinha culpa nenhuma. Mesmo assim aquela porta não se abriu.
Virei-me para a estrada apenas com a roupa no corpo e segui. Nem sei por quantas horas é que caminhei junto da berma. Os carros apitavam, as luzes cegavam-me. Todos me viam e ninguém me via.
Eventualmente, um camião parou e perguntou-me se eu queria boleia. Como forma de pagamento pela boleia tive que lhe fazer coisas até ele me atirar pela porta fora. Já cansado da minha companhia, suponho.
Não conhecia o sítio onde ele me deixou, nem qual o nome da cidade e demorei umas horas até o descobrir.
Passei os dois dias seguintes agachada e encostada a um balde do lixo abandonado numa rua menos visitada. Olhos passavam por mim, mas nenhum se aproximou. Já quase a morrer de fome ganhei coragem para me levantar e procurar por algo. Vi logo o café do outro lado da rua e reparei no resto de bolo com pedaços de morango que se encontrava num dos pratos à espera de ser levantado pelo empregado. Corri, peguei nele e corri novamente. Corri como nunca antes tinha corrido. Imaginei os empregados do café todos atrás de mim a tentarem apanhar-me, mas quando, finalmente, tive coragem de olhar para trás não havia ninguém. Estava sozinha.
Era verde. Era medrosa. Estava perdida e não tinha ninguém. Assim foram os meus primeiros dias na rua, mas, esses dias transformaram-se em semanas ou até meses e eu fui aprendendo os cantos à casa.
Já conhecia rapazes e raparigas como eu. Uns mais velhos, outros mais novos. Todos iguais. Vendiam droga, roubavam e muitos, com quem não me metia, eram capazes de matar.
Com o tempo também deixei de andar sozinha para ter companhia todo o dia. Eram a minha família. Eram quem me protegia e eu estava com eles para sempre.
Lembro-me de olharmos para vocês, sentados no chão, a pedir esmolas e sentirmos apenas nojo. Nojo por terem a vida que tem. Por nunca estarem contentes. Por não terem o suficiente e ficarem felizes. Só discutem cara a cara ou pelo telemóvel. Dizem mal, cospem mesmo para o nosso lado e nem reparam que estamos lá sentados. Vocês não nos vêem mas nós sabemos a vossa vida toda. Sabemos a que horas chegam com o carro, a que horas passam nas nossas ruas e a que horas entram e deixam o trabalho.
O meu pai deixou-me. A minha mãe expulsou-me. Não tenho mais família. Quem vai sentir a minha falta quando eu me for?
A minha família de rua? Não. Nunca eles.
Escrevi estas palavras e meti isto debaixo da tua porta ainda não sei bem porquê. Talvez porque preciso que alguém me ouça ou que me ajude. Que me ajude não, que eu não preciso de ajuda. Que me ouça. Sim, é isso. Não peço mais nada.
A minha família da rua não percebe porque é que eu passo tanto tempo a escrever, mas acredito que é a única coisa que me vai mantendo agarrada a este mundo. A escrever posso gritar, chorar sem ninguém ver, matar e comer tudo o que me apetecer. Consegues compreender isso pelo menos?
Não quero morrer na rua. Por favor, ajuda-me.
Consegues ouvir-me? Esta aí alguém? -
Paro de ler e fico a olhar parvo para as folhas. Folheio-as novamente e tento perceber o que significa isto tudo. Penso na rua. Na miúda que me pediu uns trocos hoje de manha enquanto saia do carro que eu dei só para a afastar… lembro-me de reparar o quanto ela era nova e como tinha um bonito cabelo… loiro…
Levanto-me com um salto e corro até à janela. Vejo a mesma miúda a olhar para mim da rua. O seu cabelo a esvoaçar que lhe tapa as orelhas e os seus olhos castanhos que me atravessam de um lado ao outro. Como olham directamente para mim.
Ela foge e eu tento gritar algo mas assusto-me com a quantidade de uma espécie de sombras azuis que a perseguem. Parecem…. Almas… almas de crianças… com roupas tortas, rasgadas e largas elas gritam na minha cabeça. Gritam na minha direcção.
Consegues ouvir-me? Esta ai alguém?
Texto por.: Daniel Lopes aka GoDsHanD
Imagem por.: Desconhecido - Street Kids
BTW.: O valor nunca é certo e correcto mas acredita-se que vivam na rua entre 100 a 150 milhoões crianças na rua. Só nos Estados Unidos o número ronda o 1 milhão.

Como podem reparar o titulo deste texto esta de algum modo estranho. Isso acontece por causa de um novo projecto que começa hoje. O Projecto vai correr da seguinte forma.:
23 temas, 23 Historias, 23 semanas.
Durante 23 semanas, Miguel Gonçalves aka Angelus e Daniel Lopes aka GodsHand irão escrever 23 historias únicas sobre 23 temas diferentes sendo o desta semana sobre Miudos de rua. Podem encontrar a Historia do Miguel para este tema no Link do blogue Sob o Feitiço da Lua.