
Saio da campa e olho atentamente, de cima a baixo, para Virgínia. Já suspeitava que ela aparecesse mas desejava para que não. Ao lado dela surgem agora quatro homens, seus seguidores e da sua “palavra”. Os homens carregam facas, menos um que carrega uma pistola, que por “sorte” a aponta na minha direcção.
“Que queres Virgínia? Estamos a enterrar uma criança. Até isto, tu, vens perturbar?” - tento eu dizer num tom de voz autoritário mas baixo para não criar ainda mais barulho.
“Eu sei bem que é um enterro. Ela também era minha filha. Mas hoje, Cássio, hoje é o dia em que morrerás!”
Ao ouvir estas palavras, os guardas apontam todos as armas a Virgínia, mas, nem ela nem os seus homens mostram qualquer sinal de receio, como se tivessem vindo numa missão suicida. Algo dentro de mim me diz que isto não está bem. Algo não bate certo.
“Estás velha e senil, mulher!” - Diz-lhe Jorge, não perdendo da mira da sua pistola a nuca dela. “Volta de onde vieste e dá-te por contente por ainda te deixarmos viver entre nós.”
Ao ouvir isto ela começa a rir num som estridente.
“Cala-te Virgínia! Com o barulho todo que estás a fazer ainda os vais atrair” - Grita-lhe entre sussurros Sofia.
Ela olha para Sofia, e faz sinal para que os seus homens fiquem à vontade, mas eles ignoram a ordem e não saem do lugar nem perdem o movimento, como se sustivessem o respirar à espera de atacar. Parecem hienas apenas desejando pelo momento certo, ou por um tremer de gatilho para nos saltarem em cima.
“Minha querida...” - diz Virgínia dirigindo-se a Sofia com um sorriso. “eles já cá estão. Eu sou eles!” - com um movimento de braço, ela levanta o véu do lado esquerdo mostrando uma mutação na sua face, com a vista vermelha, onde o preto pinta o resto do olho.
Não sabemos o que fazer ou como reagir. Do seu olho, saem veias azuis e vermelhas que se interligam por manchas verdes até chegarem ao seu sorriso, deixando as outras descer até ao pescoço. Os guardas com o medo começam a tremer. Miguel dá um passo na direcção dela como se quisesse observar melhor a mutação, mas rapidamente perde essa vontade pois ela levanta a mão como forma de fazer parar a sua curiosidade.
“Como vês Cássio, eu já sou um deles. Fui-me transformando desde o dia em que cheguei ao teu belo refúgio, quase morta pelas feridas. Oh... como tu tens orgulho no teu pequeno mundo! Este olho deu-me poderes, com ele consigo ver o passado e o futuro sempre que desejo e de quem desejo, mas, acima de tudo faz-me viver no meio deles. Posso sair ao meio da noite e não ser atacada. Eles cheiram-me. Rodeiam-me mas não me fazem mal. Apenas me amam...”
Não aguento mais. Esta velha pensa que uma doença qualquer que a está a atacar é uma marca deles. Uma oferenda. Isto tem que acabar e acaba hoje! Ela é um mal para o refúgio desde o primeiro dia.
“Então vai viver no meio deles Virgínia e deixa-nos em paz! Estás senil e não fazes ideia do quanto as tuas acções estão a prejudicar-nos. Isto tem que acabar mulher!” - digo entre os meus dentes semicerrados de raiva.
Ela olha para mim e a sua cabeça inclina ligeiramente para a esquerda, não perdendo o seu olhar em mim - “Eu consigo ver quem tu és Cássio. O que aconteceu com a tua família. Como ela morreu. Mas, acima de tudo, eu consigo ver no que te vais tornar. A era do Homem acabou, e nada podes fazer contra isso...”
“De que falas velha? Achas mesmo que alguém acredita em ti, nas tuas mentiras e que consegues viver e caminhar no meio dos seres?!” – Com a raiva a apoderar-se de mim estou a perder esta discussão, ao mesmo tempo que imagens da minha família me assaltam a mente. Raios...será que ela consegue ver mesmo...o que aconteceu com eles...
“Eles acreditam...” - apontando para os homens ao seu lado. - “e tu também irás acreditar! Hoje é o dia!”
Sinto o vento frio a passar no meu corpo.
Vento sem cheiro a cinzas?!
Ouço um barulho seguido de um grito, e ao olhar para trás de mim vejo o corpo morto de Teresa a mexer-se. Primeiro as mãos, seguido dos braços e a cabeça, que se levantam. Os seus olhos abrem-se, e sua mãe cai no chão de joelhos. Tudo fica silencioso e em câmara lenta, como se de um filme se tratasse. Sofia grita, deixando cair o seu caderno de desenhos no chão. Jorge é o primeiro a disparar a arma em direcção ao corpo da criança que agora já se põe de pé em cima da mesa, mas, a bala não faz nada. Passa por ela como se de um fantasma, de um espectro se tratasse. Olho para Virgína apenas para a encontrar a sorrir para mim. Aquele sorriso. Aquele sorriso maldito!
Não aguento mais.
Pego na faca que tenho no cinto e tiro-a. Todos os segundos que passam parecem uma eternidade. Vejo tudo à minha volta. Dois dos homens de Virgínia já se encontram em cima dos guardas com as lâminas espetadas nos pescoços deles, enquanto os outros não sabem o que fazer, ou com demasiado medo para fazer algo. Miguel não consegue parar de olhar para o que era Teresa, que agora se levanta na mesa, abrindo os braços e levantando a cabeça para o céu. Enquanto fecha lentamente os seus olhos mortos o manto vai caindo, mostrando o seu corpo morto, nu e branco.
Com um rápido balancear da mão viro a faca no ar, agarrando-a pela lâmina. Cerro os olhos e não perco a minha atenção em Virgínia.
Ela vê-me mas não se mexe.
Sente-me mas nada faz.
Atiro a faca na sua direcção e ela voa brilhando com os finos raios de luz que conseguem ultrapassar as nuvens e as árvores da floresta, reluzindo na lâmina.
Virgínia não perde o seu sorriso irritante e maldoso.
Jorge continua a disparar para Teresa, mas sem sucesso. O corpo da criança levanta-se da mesa como se estivesse suspensa, como se algo a estivesse a puxar para cima, apesar do esforço que a mãe faz para a trazer para baixo, entre gritos, lágrimas e puxões.
A sua cabeça descai com os olhos fechados para a sua mãe, quando de repente se abrem, apenas para mostrar uns olhos azuis e vazios que já não lhe pertencem.
A mãe larga-a repentinamente com o susto e por não saber que ser é aquele que agora habita no corpo da sua filha. Tudo isto enquanto a minha faca ruma na direcção de Virgínia. Jorge continua a disparar até ficar sem balas. Deita a arma fora e corre em direcção a um dos guardas, ajudando-o a matar um dos homens com uma paulada na cabeça. Até sangue demora a sair, nestes segundos que parecem horas. Sofia apenas olha. Miguel viaja com Teresa enquanto ela olha para a sua mãe, e a sua mãe olha para o que foi outrora sua filha.
Virgínia dá um passo em frente e espera pela faca. Teresa dobra as costas na direcção da sua mãe. O olho vermelho e preto de Virgínia fita-me. Teresa toca na testa da mãe e das suas costas saem penas pretas. A velha dá outro passo e a ponta da lâmina toca nas suas vestes. Se os deuses olhassem agora para nós veriam-nos no meio disto tudo, onde só árvores, terra, pedra, sangue e suor nos rodeia. Asas negras explodem das costas de Teresa entre sangue e pedaços de pele sem nunca perder o toque na sua mãe. Enquanto a faca trespassa o corpo da velha, uma segunda Virgínia aparece do meu lado, como se de uma quiméra se tratasse.
As asas da criança esvoaçam no ar. A mão da segunda Virgínia pousa no meu ombro. O seu olhar é sincero e puro, como se se tratasse de outro ser totalmente diferente.
O cabelo da mãe de Teresa vai-se tornando branco cal com o toque da filha e as suas asas largam penas negras que se evaporam no ar.
A velha suspira no meu ouvido - “Sente o verdadeiro significado da palavra desespero Cássio e alegra-te nela, pois esta Era é nossa. Este é o ciclo da vida.” - A faca entra totalmente no corpo de Virgínia fazendo-o voar para trás, ao mesmo tempo que também cai seca e morta a mãe de Teresa. A sua filha desaparece do mesmo modo que as penas, apenas deixando para trás o manto que cobria o seu corpo. Os homens que ainda vivem, fogem por entre a floresta enquanto Jorge tenta ajudar os guardas feridos com a ajuda de Sofia. O corpo de Virgínia cai sem vida na terra e o seu espelho que me suspirou ao ouvido desaparece.
Não ouço nada. Apenas a floresta à minha volta. Miguel olha para mim, com a face branca e eu reparo na lama nas suas botas. Ainda me lembro quando as minhas preocupações era tentar não sujar a toalha dela ao pequeno almoço enquanto mexia o leite com café.
Sofia corre na minha direcção enquanto grita por Jorge, por ajuda e me agarra pela roupa, passando a sua mão pelo meu cabelo comprido, olhando-me nos olhos com os seus em água. As suas mãos tocam-me no peito e pousam novamente na minha face.
Sinto-as húmidas.
Baixo a cabeça e olho para o meu peito, onde uma mancha de sangue se alastra pela roupa.
Que horas serão?
E assim é. O final do primeiro capitulo. Espero que quem acompanhou a historia até agora não tenha em nenhum momento ficado desiludida. Agradeço todos os comentarios que recebi. Poucos mas bons : ) Também, em todo o caso dificil publicitar um blogue.
Agradeço do fundo do coração à Sofia, por toda a ajuda que me deu e todo empenho que tem demonstrado nesta historia comigo. Adoro-te.
Inicio do próximo capitulo muito em breve :)
Texto por.: Daniel Lopes
Imagem por.: Desconhecido. Mas o texto que a acompanhava era este (
At first glance this ghost picture looks like nothing more than a simple double exposure. That is, however, until you find out that the woman standing in front of the man had been dead for years at the point in which the photograph was taken. She was the man's dead wife but yet she showed up in the ghost picture.)