Durmo e não durmo, pois a minha mente não consegue parar os sonhos. Sonhos que usam pele de pesadelos que atacam a minha dor. Vejo a minha esposa. A minha filha. Escondidas debaixo da mesa de cozinha olhando assustadas para uma nuvem de fumo verde que se formava deixando sair dela um ser de pedra e mosaicos com boca e olhos. Fitando-nos. Olhos em chamas azuis e boca sem fundo gritava e abanava a casa. Corro na sua direcção com o taco. Os gritos a furar-me a mente. O piano a tocar. Ouço o bater do meu coração nos meus próprios ouvidos. O ser abria os braços a gritar e os azulejos saíam das paredes flutuando à sua volta. Sangue a escorrer na minha testa. Sinto-o como se fosse hoje. Orquídeas brancas a balançar.
O olhar da criatura.
Acordo!
Com o corpo em suores frios e o respirar forte, mais uma noite onde os seus rostos me perseguem. Já me começo a habituar ao final destes anos todos. Deitado na cama ainda com a roupa de ontem, olho em redor e tudo vai deixando de ser nublado, começando a ganhar forma. As velas ainda ardem. Passo a mão pela cara e sinto as lágrimas na minha face. Olho para o tecto por momentos e sento-me na beira da cama. Pego num livro no topo de outros tantos e folhei-o, mas sem pensar no que estou a ler. Vamos resgatando o máximo que conseguimos lá de fora. Durante uma semana, assaltos à biblioteca foram a nossa prioridade porque o Miguel, um dos membros do concelho, acredita que podemos aprender e procurar nos livros respostas para a nossa sobrevivência e futuro. Tenho que concordar com ele e agradecer por essa ideia, porque foi com os livros que aprendemos a fazer explosivos e a metê-los em vários pontos da casa que serve de fachada ao nosso asilo, em caso deles nos descobrirem e atacarem um dia. Vamos só esperar que esse dia nunca chegue.
Lavo a cara na bacia de água limpa e olho-me ao espelho. Já estou nos meus trinta e quatro anos, feitos hoje. Com a ponta dos dedos passo por cima do olho que perdi durante uma das escavações, tapando-o de seguida com a pala. Molho em água fresca a barba comprida e o cabelo também ele comprido e já grisalho. Se elas tivessem vivas e se me vissem agora não me iriam reconhecer. Nunca na vida. Sorrio só de pensar nisso.
Visto um casaco de cabedal castanho escuro, já gasto, e calço-me. Afasto a cortina do meu quarto e saio. Os cânticos voltam e ao caminhar pelos corredores e pela área do concelho reparo na quantidade enorme de velas que se espalharam em apenas algumas horas. Vejo um grupo de mulheres e homens em vestes de monges que caminham lentamente em fila indiana. Não pertencem ao grupo senil de Vírgina. Não pertencem a ninguém. Apenas são pessoas que se oferecem para ajudar em tempos de luto. Olho para eles e baixo a cabeça em forma de cumprimento, seguindo-os sem perturbar o seu caminho. Entramos por uma das aberturas que dá para o lago e vejo a quantidade de pessoas que estão a entoar os cânticos pela alma de Teresa.
Só os trabalhadores vitais e alguns guardas é que não estão presentes.
Deixo os monges irem á frente em direcção ao meio do lago. Envolto em panos de linho branco, o corpo nú de Teresa encontra-se pousado em cima de uma espécie de jangada feita de madeira. Tão calma e bela com o seu cabelo arranjado e tratado. Ao seu lado está a mãe que segura na jangada. No corpo da criança bate um raio de luz que entra pela fenda que existe no topo do tecto da caverna. Aquele é o ponto mais fraco do nosso asilo, mas essencial para a nossa sobrevivência incluindo a renovação do oxigénio, saber em que parte do dia estamos ou apenas podermos olhar para algo feita de luz natural, sem ser estas paredes frias e mal iluminadas. Mesmo tapada por raízes de árvores, que descem e caem pela fenda, é possível com a junção de algum azar os seres encontrarem-na. Apesar da presença dos guardas durante a noite, não nos é dada a segurança que eu desejaria. Junto-me ao resto do concelho que se encontra no ponto mais alto da área, cumprimentando-os silenciosamente. Não me junto aos cânticos mas eles estão aqui.
Os monges entram na água, como se ignorassem a água nas suas vestes e aproximando-se do corpo, rodeando-o. Pegam em jarros de barro e com a água do lago vão molhando o corpo lentamente, banhando-o, enquanto a mãe de Teresa pega em cristais trabalhados retirados das paredes desta mesma caverna e os vai pousando no corpo da sua filha.
Um dos monges abre os braços como pedido de silêncio e sem retirar o capuz da cabeça fala.
Ó Deus. Ó Deuses. Ó tu que nos abandonas-te e castigaste ouve-me. - diz ele com a voz baixa e rouca mas suficiente para todos ouvirem – Ouve-me pois concedei-nos alguma alegria. Vos suplicamos, não nos leveis mais filhos pois perder mais um é como perder toda a vida que criaste. Perdoai os nossos pecados e Acorda do teu trono para nos acariciar a alma. - Finaliza ele voltando a baixar a cabeça e dando tempo para os cânticos retomarem.
Os monges largam os jarros na água deixando-os ir ao fundo e com a ajuda da mãe pegam no corpo da rapariga. Começam a caminhar para fora do lago e dirigem-se para as escadas que só são usadas em dias como este. Os seus degraus foram trabalhados durante anos por um grupo de pessoas que tinham sido historiadores ou professores de história onde neles esculpiram e pintaram a história da Humanidade até ao dia dos ataques. Estas escadas juntas à parede da cave vão dar à área de cima, com ligação ao corredor mais perto da saída da gruta. Nesta fase, eu e os membros do concelho juntámo-nos aos monges. A partir daqui só estão autorizados a ir ao exterior o concelho, os monges, os familiares mais próximos do defunto e cinco guardas com armas de fogo.
Ao juntar-me ao grupo questiono-me onde estará o pai da rapariga e mais importante ainda, porque é que ainda não vi Virgínia.
Continua...
Texto por.: Daniel Lopes
Página V e VI do cáp I.