quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Projecto 23 - Semana VI






O sol queima-me e assa-me a pele como se próprio Deus me tivesse atirado para dentro do forno do inferno. Com os lábios já a quebrar e a rogar por água caminho mais uns metros neste deserto. Carrego a arma ao mesmo tempo que me vou aproximando dela. Uma bala, duas balas, três balas… oh yeah… tenho que admitir que esta parte foi “cool”, era só estar a ouvir a música “you on the run” dos The Black Angels, quando começa aquela batida aos vinte segundos e tornava este momento perfeito.


O corpo ainda treme. Tenta agarrar-se ao que lhe resta da vida. Triste mas compreensível. O deserto. Este sitio antes de tudo acontecer era um espaço com um lago, jardins e risos, mas, depois tudo morreu de fome e tudo desapareceu ficando apenas os corpos abandonados e sem nome para os verdadeiros anjos negros. Eles rodeiam os ares e apenas se mantém vivos porque nos vão comendo. Abutres. O último de nós um dia também vai desaparecer e a seguir são eles. Aproveitem enquanto poderem é o que eu costumo dizer.


O deserto, um bom local para se morrer. A minha mulher não concorda. Bem… nunca concordou com nada. Na verdade já nem me lembro bem porque é que me casei com ela. Sei que antes tinhas umas belas pernas, agora, agora nem isso tem. Não era as mamas nem o rabo… era mesmo aquelas pernas macias e compridas. Sempre fui um tolo por pernas.


O carregador entra com uma facilidade anormal na arma. Estou possuído. Sinto-me tão bem. Feliz, livre e em controlo. Humm… como este sentimento me lava a alma. É impossível conter o meu sorriso. Meto a mão no bolso. Um isqueiro e um cigarro acesso na boca.
Agora tenho centenas de cigarros em casa porque já não preciso de pagar um rim, um pulmão e dois cancros por eles. São de graça nos tempos que correm.


Agacho-me e deito-me ao lado dela. O sol cega-me. Tiro os óculos de sol do bolso. Sim, muito melhor agora.


Como te sentes meu amor? – Pergunto a tentar ser o mais cordial possível.


Ela nada diz. Em todo o nosso casamento teve sempre algo para dizer, mas, no momento mais importante da nossa vida, não diz nada. É preciso ter lata realmente.


Estou a falar contigo meu amor – pico-lhe com a ponta da arma para lhe chamar a atenção – estas a ouvir?


Nada.


Realmente é preciso ter falta de educação… - sento-me e dedico-me a tirar a terra seca que ficou agarrada as calças. - Sempre disse que te tinham educado muito mal...

Estudo-a com o meu olhar. Ela apenas respira mas cada vez menos. O tiro que lhe dei não a matou mas tornou-a calma e passiva. Por um lado admiro o tempo que esta a aguentar ainda por cima ao ter suportado a viagem até aqui.


Lamento meu amor, mas estavas a pedir por isto. Era desta forma ou comia-te… literalmente – passando-lhe a mão pelo cabelo castanho claro.


Ela sussurra algo.


Que foi que disseste querida? – Aproximo-me dela. Os lábios dela estão cheios de sangue.


Nada.


Estas a deixar-me curioso assim… - irritante até ao fim esta mulher – diz-me lá… repete para mim, para o teu marido.


Nada.



Que bela peça esta.



O mundo já acabou há dois anos. Sem sabermos, morremos já há dois anos. A nossa sentença foi assinada quando vieram informar nas notícias que não havia mais abelhas. Que elas tinham morrido todas, e nós como seres racionais que somos, rimo-nos. Afinal de contas como podia um ser tão pequeno ser o nosso calcanhar de Aquiles e começar o processo de nos extinguir a todos? Mas, num abrir e fechar de olhos, certos alimentos começaram a aumentar de preço atingindo preços irreais e depois foi a vez de tudo o resto começar a ficar cada vez mais escaco. Os ricos deixaram de ser ricos porque gastavam tudo em comida e os pobres começaram a matar e a pilhar cada vez mais em busca de alimento. Histórias eventualmente foram surgindo. Pais que comiam os filhos, filhos que comiam os pais. Vizinhos que comiam vizinhos e um numero cada vez maior de desaparecidos. Tudo morreu, tudo desapareceu tão rápido sobre o chão morto do mundo.


Um dia um velho que vivia num prédio abandonado com granadas e um gato amarrado ao corpo tentou-me explicar o porque de termos chegado a este ponto, mas sinceramente não lhe prestei muita atenção. Só pensava na fome que tinha. Era só nisso que conseguia pensar. Nisso e no gato que ele fazia festas. Todos olhavam para ele e para o seu gato. A fome era demasiado. Só as granadas mantinham os mais audazes longe.


Não queria comer carne humana. Prometi a mim mesmo que não ia seguir por esse caminho, mas, sabia e sentia que cada vez mais pessoas pensavam e começavam a alimentar-se dessa forma. Eu e a minha mulher prometemos que preferíamos morrer do que chegar a esse ponto.


Os governos nada faziam. A polícia menos fazia e tudo ficou maluco. Desesperos e gritos nas ruas durante a noite ou durante o dia. Nada mais importava. A morte chegou e sentou o seu cu gordo mesmo em cima de nós até a fome ficar, simplesmente insuportável.


No dia que me preparava para ir buscar o gato do velho, estando ele ou não com granadas a minha mulher disse-me que nesse mesmo dia um grupo de putos tinha ido lá de manha ameaçando de morte o velho caso ele não lhes desse o gato, mas, quando chegaram lá era o próprio velho que o estava a comer. Cru e tudo. Começou a rir-se ao mesmo tempo que chorava e cuspia sangue e tirava as protecções das granadas. Metade do prédio caiu.


Foi nesse dia a visitar o que restava do prédio que encontrei o baú do velho cheio de armas e fotografias dele em novo debaixo dos escombros do prédio. As armas nunca foram tão poderosas como em tempos de desespero. Protegia-me e protegia a minha mulher. Tudo o que se aproximava eu disparava e matava, até ao mítico dia. O dia de hoje.


Fecho os olhos e vejo a imagem dela com a faca na mão a cortar o pescoço de uma criança que apanhou na rua. Como a merda de uma pedófila se tratasse chamou-a, fez de amiga dela e ganhou a confiança dela oferecendo-lhe um abraço e um sítio seguro para ela chorar, mas, momento em que a criança baixou as defesas ela cortou-lhe a garganta como se nada fosse.
Uma nuvem negra assaltou-me os olhos e disparei sobre ela.


Agora aqui estamos nós.


Levanto-me, arranjo os óculos de sol e aponto-lhe a arma. Ela ainda tem a coragem e as forças para olhar nos meus olhos.


Este era o teu sítio preferido antes de tudo aconteceu meu amor. – Não consigo perder este sorriso. – Agora é o raio de um deserto e tu que nunca gostaste muito de desertos.


Fico a espera de um porquê e de uma razão. Apenas de uma resposta.



Tinha… fome… precisava… - As palavras saem-lhe com dificuldade mas mesmo assim saem-lhe.



Precisavas… - Repito ao olhar para o céu e a ver as asas negras dos abutres no alto. – Precisas é de um médico ou de comer um belo guizado de borrego, mas, eu infelizmente, só tenho balas.



Disparo a arma com um arrepio na espinha. Acerto-lhe mesmo no meio da cara e ela explode manchando o manto castanho claro do deserto de vermelho vivo. Atiro-lhe o cigarro e questiono-me. Norte, sul, este ou oeste? Cheiro o ar e algo me diz que a norte vou encontrar um belo javali com castanhas preparado para mim.




Sim, perdi a minha sanidade. Que deus me abençoe. Um tiro na cabeça e lá vou eu.


FIM







Texto por.: Daniel Lopes
Imagem por.: Desconhecido - medieval beekeeper


BTW.: A Verdade é esta e ela é bastante simples: As Abelhas estão a desaparecer! Os grandes paises já vieram avisar para esse acontecimento. Mais informação poder ver no Jornal o Público ou aqui - http://www.buzzle.com/articles/disappearing-bee-theories.html


Este texto vem em nascimento com o Tema VI que é Abelhas e o seu desaparecimento. Podem ler a versão do Angelus no blogue dele que eu recomendo vivamente.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Mensagem Importante


Um bem haja a todos que conseguem vir aqui ler estas palavras.


Antes de mais as minhas sinceras desculpas, devido ao facto que nestas últimas semanas não ter vindo aqui "postar" nenhum novo texto. Creio que até eu fui afectado pela nuvem de férias (de uma maneira menos agradavel do que muitos) que se sente neste nosso cantinho do mundo.


Prometo que o Projecto 23 volta já muito em breve.


De relembrar que o Projecto 23 consiste num exercício de escrita que irá durar vinte e três semanas. Ou seja, durante essas semanas eu e o Miguel Gonçalves iremos apresentar textos novos sempre baseado num tema novo.


23 semanas, 23 historias, 23 temas.



Obrigado a todos que tem comentado aqui, que me tem dado os comentários pessoalmente, pelo MSN ou de outra qualquer forma que agora não me lembro.


Obrigado.


Daniel Lopes