
O sol queima-me e assa-me a pele como se próprio Deus me tivesse atirado para dentro do forno do inferno. Com os lábios já a quebrar e a rogar por água caminho mais uns metros neste deserto. Carrego a arma ao mesmo tempo que me vou aproximando dela. Uma bala, duas balas, três balas… oh yeah… tenho que admitir que esta parte foi “cool”, era só estar a ouvir a música “you on the run” dos The Black Angels, quando começa aquela batida aos vinte segundos e tornava este momento perfeito.
O corpo ainda treme. Tenta agarrar-se ao que lhe resta da vida. Triste mas compreensível. O deserto. Este sitio antes de tudo acontecer era um espaço com um lago, jardins e risos, mas, depois tudo morreu de fome e tudo desapareceu ficando apenas os corpos abandonados e sem nome para os verdadeiros anjos negros. Eles rodeiam os ares e apenas se mantém vivos porque nos vão comendo. Abutres. O último de nós um dia também vai desaparecer e a seguir são eles. Aproveitem enquanto poderem é o que eu costumo dizer.
O deserto, um bom local para se morrer. A minha mulher não concorda. Bem… nunca concordou com nada. Na verdade já nem me lembro bem porque é que me casei com ela. Sei que antes tinhas umas belas pernas, agora, agora nem isso tem. Não era as mamas nem o rabo… era mesmo aquelas pernas macias e compridas. Sempre fui um tolo por pernas.
O carregador entra com uma facilidade anormal na arma. Estou possuído. Sinto-me tão bem. Feliz, livre e em controlo. Humm… como este sentimento me lava a alma. É impossível conter o meu sorriso. Meto a mão no bolso. Um isqueiro e um cigarro acesso na boca.
Agora tenho centenas de cigarros em casa porque já não preciso de pagar um rim, um pulmão e dois cancros por eles. São de graça nos tempos que correm.
Agacho-me e deito-me ao lado dela. O sol cega-me. Tiro os óculos de sol do bolso. Sim, muito melhor agora.
Como te sentes meu amor? – Pergunto a tentar ser o mais cordial possível.
Ela nada diz. Em todo o nosso casamento teve sempre algo para dizer, mas, no momento mais importante da nossa vida, não diz nada. É preciso ter lata realmente.
Estou a falar contigo meu amor – pico-lhe com a ponta da arma para lhe chamar a atenção – estas a ouvir?
Nada.
Realmente é preciso ter falta de educação… - sento-me e dedico-me a tirar a terra seca que ficou agarrada as calças. - Sempre disse que te tinham educado muito mal...
Estudo-a com o meu olhar. Ela apenas respira mas cada vez menos. O tiro que lhe dei não a matou mas tornou-a calma e passiva. Por um lado admiro o tempo que esta a aguentar ainda por cima ao ter suportado a viagem até aqui.
Lamento meu amor, mas estavas a pedir por isto. Era desta forma ou comia-te… literalmente – passando-lhe a mão pelo cabelo castanho claro.
Ela sussurra algo.
Que foi que disseste querida? – Aproximo-me dela. Os lábios dela estão cheios de sangue.
Nada.
Estas a deixar-me curioso assim… - irritante até ao fim esta mulher – diz-me lá… repete para mim, para o teu marido.
Nada.
Que bela peça esta.
O mundo já acabou há dois anos. Sem sabermos, morremos já há dois anos. A nossa sentença foi assinada quando vieram informar nas notícias que não havia mais abelhas. Que elas tinham morrido todas, e nós como seres racionais que somos, rimo-nos. Afinal de contas como podia um ser tão pequeno ser o nosso calcanhar de Aquiles e começar o processo de nos extinguir a todos? Mas, num abrir e fechar de olhos, certos alimentos começaram a aumentar de preço atingindo preços irreais e depois foi a vez de tudo o resto começar a ficar cada vez mais escaco. Os ricos deixaram de ser ricos porque gastavam tudo em comida e os pobres começaram a matar e a pilhar cada vez mais em busca de alimento. Histórias eventualmente foram surgindo. Pais que comiam os filhos, filhos que comiam os pais. Vizinhos que comiam vizinhos e um numero cada vez maior de desaparecidos. Tudo morreu, tudo desapareceu tão rápido sobre o chão morto do mundo.
Um dia um velho que vivia num prédio abandonado com granadas e um gato amarrado ao corpo tentou-me explicar o porque de termos chegado a este ponto, mas sinceramente não lhe prestei muita atenção. Só pensava na fome que tinha. Era só nisso que conseguia pensar. Nisso e no gato que ele fazia festas. Todos olhavam para ele e para o seu gato. A fome era demasiado. Só as granadas mantinham os mais audazes longe.
Não queria comer carne humana. Prometi a mim mesmo que não ia seguir por esse caminho, mas, sabia e sentia que cada vez mais pessoas pensavam e começavam a alimentar-se dessa forma. Eu e a minha mulher prometemos que preferíamos morrer do que chegar a esse ponto.
Os governos nada faziam. A polícia menos fazia e tudo ficou maluco. Desesperos e gritos nas ruas durante a noite ou durante o dia. Nada mais importava. A morte chegou e sentou o seu cu gordo mesmo em cima de nós até a fome ficar, simplesmente insuportável.
No dia que me preparava para ir buscar o gato do velho, estando ele ou não com granadas a minha mulher disse-me que nesse mesmo dia um grupo de putos tinha ido lá de manha ameaçando de morte o velho caso ele não lhes desse o gato, mas, quando chegaram lá era o próprio velho que o estava a comer. Cru e tudo. Começou a rir-se ao mesmo tempo que chorava e cuspia sangue e tirava as protecções das granadas. Metade do prédio caiu.
Foi nesse dia a visitar o que restava do prédio que encontrei o baú do velho cheio de armas e fotografias dele em novo debaixo dos escombros do prédio. As armas nunca foram tão poderosas como em tempos de desespero. Protegia-me e protegia a minha mulher. Tudo o que se aproximava eu disparava e matava, até ao mítico dia. O dia de hoje.
Fecho os olhos e vejo a imagem dela com a faca na mão a cortar o pescoço de uma criança que apanhou na rua. Como a merda de uma pedófila se tratasse chamou-a, fez de amiga dela e ganhou a confiança dela oferecendo-lhe um abraço e um sítio seguro para ela chorar, mas, momento em que a criança baixou as defesas ela cortou-lhe a garganta como se nada fosse.
Uma nuvem negra assaltou-me os olhos e disparei sobre ela.
Agora aqui estamos nós.
Levanto-me, arranjo os óculos de sol e aponto-lhe a arma. Ela ainda tem a coragem e as forças para olhar nos meus olhos.
Este era o teu sítio preferido antes de tudo aconteceu meu amor. – Não consigo perder este sorriso. – Agora é o raio de um deserto e tu que nunca gostaste muito de desertos.
Fico a espera de um porquê e de uma razão. Apenas de uma resposta.
Tinha… fome… precisava… - As palavras saem-lhe com dificuldade mas mesmo assim saem-lhe.
Precisavas… - Repito ao olhar para o céu e a ver as asas negras dos abutres no alto. – Precisas é de um médico ou de comer um belo guizado de borrego, mas, eu infelizmente, só tenho balas.
Disparo a arma com um arrepio na espinha. Acerto-lhe mesmo no meio da cara e ela explode manchando o manto castanho claro do deserto de vermelho vivo. Atiro-lhe o cigarro e questiono-me. Norte, sul, este ou oeste? Cheiro o ar e algo me diz que a norte vou encontrar um belo javali com castanhas preparado para mim.
Sim, perdi a minha sanidade. Que deus me abençoe. Um tiro na cabeça e lá vou eu.
FIM
Texto por.: Daniel Lopes
Imagem por.: Desconhecido - medieval beekeeper
BTW.: A Verdade é esta e ela é bastante simples: As Abelhas estão a desaparecer! Os grandes paises já vieram avisar para esse acontecimento. Mais informação poder ver no Jornal o Público ou aqui - http://www.buzzle.com/articles/disappearing-bee-theories.html
Este texto vem em nascimento com o Tema VI que é Abelhas e o seu desaparecimento. Podem ler a versão do Angelus no blogue dele que eu recomendo vivamente.