quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O velho e o Prédio




O tempo vai ficando pior lá fora.


Ele levanta-se da cama do seu quarto abafado com o aquecedor no máximo e o maior aglomerado de livros que ele já se deu ao luxo de ter. Ajeita o seu pijama às riscas e aperta melhor o robe todo amarrotado por se ter deixado adormecer com ele. Olha pela janela observando dois miúdos que jogam à bola contra a parede sem darem muita atenção tanto à chuva que se aproxima como á mãe que grita para eles voltarem para dentro.


O céu vai ficando cada vez mais cinzento. As nuvens dançam engolindo as que ainda tem um pouco de cor branca nelas. Este prédio fez trinta e cinco anos no passado 2 de Fevereiro, que o faz questionar até que ponto ele aguenta um bom temporal. Lembra-se que esta a ficar velho e sem sonhos como o próprio prédio. Toca com a mão direita nas suas rugas e quase que jura para com ele próprio que já lhe apareceram mais uma dezenas de novas só em poucas horas.


“Um dia destes vai quebrar e leva-me com ele.” - Diz com a cabeça baixa entre sussurros ao mesmo tempo que sai da beira da janela pegando num livro qualquer apenas para o atirar para cima de outro monte sem qualquer tipo de motivo.


O nome deste homem é Rowland Hill e ele nunca se casou. Nunca fez nada de importante na vida, mas o pormenor mais fundo e triste na personalidade deste ser foi nunca ter conseguido dar o último passo. Sobretudo quando ele mais importava.


Com apenas 14 anos teve o seu primeiro amor. Uma rapariga esguia de olhos e cabelos castanhos. Não era muito bonita lá isso é verdade, como também sem dúvida alguma que não se podia dizer que era feia. Havia algo no caminhar e na maneira dela se sentar nas aulas que atraia profundamente Rowland. Para seu grande espanto ela retribuiu a sua atracção. Uma coisa levou a outra como em todas as histórias e num dia de Verão igual a tantos outros deram a mão. Nos dias seguintes tomaram café fazendo de conta que gostavam do sabor daquele líquido, que os adultos tanto tomam, enquanto o que eles queriam mesmo era o tal beijo. O primeiro beijo. Saber a que sabe quando as línguas se tocam pela primeira vez, mas, ele nunca teve a coragem para tal. Nunca deu aquele passo e ela esperou. Sonhou pelo primeiro beijo e ele fugiu. Foi-se embora deixando de lhe dar a mão e ele deixou-se estar.


Sim, ele eventualmente acabou por experimentar o prazer do primeiro beijo com uma rapariga de uma outra cidade menos bonita do que a primeira. Claro que durante a sua vida teve o seu número normal de namoradas e de experiências amorosas, mas nem uma delas partiu da sua coragem. Esta falta de força de vontade reviu-se quando tentou enviar um conto que tinha escrito nos seus 18 anos para uma importante editora. Lembra-se desse momento como se ainda fosse ontem. Parado em frente aos correios com o envelope na mão. Como tirou a ficha e viu o número 056 nele enquanto se punha na fila de atendimento. Mais tarde disse a toda gente que tinha enviado quando na verdade ele continuava guardado na sua mochila indo parar mais tarde a um balde do lixo aleatório. Quando os amigos ou alguma namorada da altura lhe perguntava se a editora já lhe tinha dado algum tipo de resposta as suas mentiras para tentar mostrar alguém que na verdade não era aumentavam e empilhavam-se em cima umas das outras.


A areia dos seus dias foi-se deslizando, passando pelos seus 21 anos de idade como pelos seus 37 ou 45, quando se divorciou. Este divórcio aconteceu no trânsito enquanto tentavam chegar ao centro comercial num domingo. Era ela que conduzia e a primeira palavra sobre o assunto partiu igualmente dela. Dos 45 viu-se nos 50 sem filhos e sem nenhum trabalho verdadeiramente concluído.


No aniversário dos seus 50 anos comprou um livro e sentou-se em casa. Nunca acabou de ler o livro.


Agora com 75 Invernos, reformado e com um amor maior do que nunca por livros e mantas com padrões estranhos, tenta ouvir de costas viradas para a janela a tempestade que se aproxima. Pega na cadeira almofadada do quarto e senta-se pegando num livro que o folheia sem verdadeiramente o ler. Olha para as palavras mas elas não lhe dizem nada porque com esta idade só consegue pensar é nos dias que já lá vão. Sempre amou escrever e desenhar, mas fazer alguma coisa por isso, nunca o fez. Claro que mostrou aos seus amigos e colegas pelos inúmeros trabalhos por onde passou e toda a gente lhe dava elogios e lhe dizia que ia ter sucesso e ser alguém. “Como estavam eles enganados.” Pensou e pegou muitas vezes no seu material para mostrar a alguém que verdadeiramente entendesse sobre o assunto ou lhe pudesse ajudar ou lançar algo com o seu nome, mas virava as costas sempre no último minuto preferindo sonhar com a possibilidade de tudo correr bem do que se calhar arriscar e ouvir dizer que o seu trabalho não era assim tão bom. Muito ao contrario do que todos os seus amigos diziam.


Levanta-se e empurra a cadeira para a sua mesa de trabalho deixando cair o livro desajeitadamente para o chão. Na mesa ao olhar para todas as folhas dos seus trabalhos inacabados uma raiva sobe pelo seu corpo acima ao mesmo tempo que a tempestade vai subindo de intensidade lá fora. Pega numa folha branca e começa a escrever. As palavras vão fluindo e transformam-se em frases na folha. Os relâmpagos começam a cair e os seus velhos dedos começam a fazer a ferida nas teclas da máquina. As janelas abanam violentamente com a proximidade do mau tempo e ele tudo ignora. Só pensa em acabar. Aponta com um lápis 2B sempre que acaba uma página onde quer que fiquem os seus futuros desenhos e como eles se relacionam na sua história. Um trovão cai demasiado próximo da sua janela que cria uma rachadela no vidro e faz todo o prédio abanar mas nem isso o consegue retirar do seu transe. Do seu objectivo. A chuva bate cada vez com mais intensidade na janela fazendo a rachadela aumentar assim como a sua pureza na escrita aumenta. Lágrimas viajam límpidas dos seus olhos pela sua face a baixo ultrapassando todas as rugas no seu rosto. Página atrás de página, nota atrás de nota, tudo se vai transformando e concluindo. O prédio abana. Ele finaliza a última frase. Os gritos começam. As telhas começam a abanar e a cair. Rowland embrulha o seu conto em tiras de papel de jornal. Levanta-se e procura por um elástico nas gavetas. A janela parte-se em mil bocados que faz o vento entrar mandando abaixo os livros ou os pequenos quadros que estavam pendurados nas paredes. O chão do seu pequeno quarto começa a rachar mas mesmo assim ele ignora e sem largar o conto embrulhado em papel de jornal passa por cima dela e vai procurar por um elástico na cozinha. Os tachos e as panelas cantam uns contra os outros. O azulejo branco sujo com desenhos de flores na cozinha começa a partir. Ele finalmente encontra o elástico numa gaveta cheia de fita colas e pequenos garfos de plástico. Com a velocidade de um gato e imprópria para a sua idade embrulha o conto e volta ao quarto. O céu já se vê através do telhado. O vento sopra cada vez mais. A chuva cria uma autêntica piscina e os relâmpagos rodeiam o seu prédio. Ele sorri e mete o conto num envelope escrevendo nele. Pega na sua cadeira almofadada e senta-se agarrado ao conto. Olha por onde estava a janela e suspira. Um último trovão, um último vento e os tijolos começam a ceder e a ceder até o prédio cair na sua totalidade à velocidade de um pequeno piscar de olhos.


O seu corpo só foi encontrado muitas horas depois no meio dos escombros ao lado da sua cadeira agora toda partida e de alguns dos seus livros que por estranho que pareça eram na verdade os seus preferidos. As suas mãos agarravam um envelope e nele lia-se:

“Por favor entregar numa qualquer editora que eu nunca tive coragem. Obrigado. Rowland Hill”






Texto por.: Daniel Lopes
Imagem por.: mazurkin


Sonhar é bom mas o mais importante é não ter medo de os perseguir.



BTW - Sir Rowland Hill, (3 de dezembro de 1795 - 27 de agosto de 1879) foi um professor e reformista britânico. Foi o grande idealizador do selo, quando teve a ideia de sugerir à coroa inglesa a criação de uma taxa a ser paga para envio de correspondência no Reino