segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Capitulo I, Pag VII & VIII


Ao chegar ao exterior, o fino e fraco sol já tinha desaparecido para dar lugar a nuvens escuras carregadas de cinzas. No ar ainda se notam pequenos pontos de carvão que carregam o ar e que quase nos obriga a cobrir a cara com um pano, para tentarmos filtrar o ar. Aqui dentro da casa os monges carregam o corpo da criança sem emitirem um som de esforço, enquanto a mãe luta contra as lágrimas que lhe querem a todo custo descer a face. Três dos cinco guardas fazem de batedores na casa e arredores, principalmente no caminho até a floresta para ver se existe algum perigo eminente, enquanto os outros dois ficam connosco. Os outros seis membros do conselho juntam-se a mim. 

Isto não pode ser, se formos atacados pode morrer o conselho todo e depois as pessoas lá em baixo ficam sem ter quem os lidere. Ficam ainda mais perdidas e desorganizadas. Sussurro ao ouvido de Sofia, um dos membros mais importantes do conselho, que apenas três de nós é o suficiente para vir, e ela transmite automaticamente aos outros, concordando com a opinião. É com agrado que os outros, tirando o Jorge, voltam ao refúgio. De todos os membros do conselho, junta-se a mim a Sofia que antes dos ataques era professora de línguas, Miguel, historiador de culturas antigas e Jorge, militar das forças armadas. Os batedores voltam, dão mais uma volta à casa e tapam o caminho de onde viemos. Olho por uma das janelas partidas da casa e observo as casas e prédios destruídos à nossa volta. É claro que eles sabem que nós estamos aqui. Se não nos vêem, sentem o nosso cheiro, mas se calhar nunca se esforçaram por nos encontrar, afinal esta nova Era é agora deles. Mesmo que a esta hora ainda seja, a nosso ver, minimamente seguro vir cá fora sabemos que eles habitam nas sombras, pelo menos até ao dia em que eles se habituem à luz solar e aí sim, tudo será mais difícil para nos conseguirmos manter vivos.

Os batedores juntam-se perto da saída da casa e fazem sinal para não fazermos barulho. Os monges endireitam o corpo e dão o primeiro passo. Jorge pede uma arma a um dos guardas e junta-se a eles. Eu tenho a minha faca agarrada ao meu cinto. Saímos todos, tentando fazer o mínimo de barulho possível, seguindo directamente para a floresta que felizmente fica no topo da rua. Ao subir a rua consigo ver o que resta da antiga vila de Sintra. Algo que antes era tão perfeito, com a sua carga mística, dá agora lugar a algo partido, mas por incrível que pareça ainda possui de alguma forma uma certa beleza, mesmo com esta vista carregada de cinzas, pó e tons cinzentos. Só vim a Sintra antes dos ataques duas vezes, e sempre que vim foi porque elas me pressionavam e quase me arrastavam até aqui. Creio que estava sempre mais preocupado com o meu espaço e o meu trabalho. Lamento agora, não ter aproveitado melhor esses dias. 

Saio dos meus pensamentos porque tropeço no pé da Sofia, onde ela me lança um olhar de reprovação. Pouso a mão no seu ombro como forma de pedir desculpa. Ao subir a rua entramos directamente num caminho estreito que entra dentro da floresta, onde caminhamos uns bons dez minutos entre árvores finas e febris, nenhuma delas contendo uma única folha, até chegarmos a uma casa de pedra que noutra vida foi uma pequena capela. Agora só metade dela se encontra de pé. Encontra-se envolta em raízes secas e podres, mas, no seu centro mantém-se firme um poço, já sem água com dizeres e datas inscritas na pedra, sendo a mais antiga que encontrei de 1456. À volta da capela inúmeras campas de pedra erguem-se do chão, algumas com estátuas de mármores partidas ou apenas com cruzes de madeira. que complementam a paisagem. Por incrível que pareça os seres não se aproximam deste local. Não sabemos porquê, mas, foi algo que alguns dos sobreviventes descobriram há uns tempos atrás, ao fugir de dois seres que no momento em que entraram nesta espécie de cemitério, os seres fugiram emitindo gritos de dor e medo. Já percorremos este espaço inúmeras vezes mas até hoje não encontrámos nada que explique o porquê do seu receio para com este local, mas reparámos que aqui só estavam enterradas mulheres. Só e apenas mulheres. Não havia nem um único homem aqui enterrado. Questionámos as pessoas, mas nenhuma sabia explicar a existência deste local e muitas delas não sabiam sequer da sua existência, como se este lugar tivesse aparecido depois dos ataques. Depois de uma reunião com o conselho, decidimos que o melhor era mesmo não perturbar o local e continuar apenas a enterrar pessoas de sexo feminino aqui, tal como há centenas de anos tem sido feito e os de sexo masculino serão carbonizados e atirados ao ar. 

"Corpo de homem nu, limpo e completo não passas de alimento para as chamas da manha. Sonha que os teus restos, feitos em carvão e papel são atirados ao ar e aí luta a tua melhor batalha. Voa e entra nas narinas dos nossos inimigos. Daqueles que nos tiraram tudo. Entra nelas e mata-os porque eles nunca antes tinham inspirado tamanha perfeição e pureza. Mata-os e alegra-te no teu eterno descanso." - Este foi um dos textos que Miguel escreveu aquando a decisão sobre o que fazermos com os corpos dos mortos, entrou em vigor. Não sei porquê, mas sempre que penso neste assunto lembro-me deste texto.

Os monges pousam o corpo numa mesa que construímos aqui e pegam numa série de pás. Eu e Jorge pegamos em duas das pás e ajudamos a cavar. A mãe de Teresa levanta o véu que tapa o corpo da sua filha que jaz na mesa e vai penteando o seu cabelo. Ninguém consegue dizer nada, porque uma coisa é certa, é nestes momentos, que recordamos tudo o que perdemos e quem também já perdemos. Ao retirar a terra para um monte ao lado pergunto-me a mim próprio, se o Deuses em quem tanto acreditávamos viraram as suas costas a este mundo ou apenas nos estão a castigar depois de tantos anos de pecados, guerras e morte, porque é exactamente com isto que eles nos estão a castigar.
Sofia está junto aos guardas que não tiram o olhos sobre a floresta. Mas, se conheço bem a Sofia ela está a procura de algum tipo de vida. Um pássaro, um coelho, apenas algo que lhe dê esperança para o dia de amanha. Enquanto cavo vejo-a a tirar um caderno da sua sacola e um lápis de carvão onde começa a desenhar o que vê.  

A minha pá bate em algo que ouvimos a rachar e partir. Com tamanho silêncio este rachar percorre a floresta toda. Os guardas voltam as costas para ver o que aconteceu. Todos paramos. Retiro a pá, mas, não vejo nada. Jorge agacha-se e passa os dedos na terra. Uma manhã branca assalta-nos os olhos. Damos um passo atrás e Jorge afasta mais a terra para revelar uma caveira que nos fita com o espaço que parti mesmo na nuca. Estamos em cima de uma campa, uma campa que não estava marcada. Neste momento ouvimos um barulho vindo da floresta e nela aparece Virgínia envolta num manto branco sujo, com o qual tapa o lado esquerdo da sua cara. Os guardas apontam-lhes as armas ao que ela responde com um sorriso e pára, não desviando o seu olhar fixo em mim. Os guardas nem se aperceberam da sua chegada. 
Virgínia aponta o dedo velho e fraco na minha direcção e grita:

"Hoje é o dia Cássio. Hoje é o dia!"


Continua.

Texto por.: Daniel Lopes (com a ajuda da bela Sofia).

Imagem de.:  Desconhecido, St. Mary's Church no fecho do século 19th.