
Hoje acordei ao sabor da lua a lamber os céus. Nao questionei o meu acordar nem o porque. Apenas sentei-me na cama e cuspi o sangue que tinha nos pulmoes. Ao olhar para o sangue senti vontade de o espalhar pelo espelho do quarto. Algo em mim queria tapar ou esconder tudo que ele tinha visto.
Sera que ele sentiu o mesmo que eu?
Espelho meu, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu agora no final?
O meu punho cerra-se e começo a bater no espelho. Ele vai rachando. Vai quebrando. Vai sentindo a dor que sinto desde o momento em que pousei o meu olhar em ti. No momento que senti o teu cheiro. O espelho quebra. Pedaços de vidro voam cortando a minha face, e, em cada gota de sangue que sai do meu corpo eu mato um momento que vivi contigo.
Duas horas passam e o meu corpo fecha as feridas que tenho. A porta abre-se. Tu entras pegando em mim e levas-me nesta cadeira com rodas. Falas e sussurras ao meu ouvido. Não consigo entender uma unica palavra, porque me perco com demasiada facilidade no teu sorriso.
O meu corpo vai morrendo. O caminho até ao meu último destino acontece.
A tua mão sobre a minha perna enquanto conduzes faz-me olhar pelo vidro e notar em todos os pormenores que atá hoje não tinha dado importância.
Vou sentir falta deste mundo.
As árvores que servem de ninho para os pássaros e de sombra para os casais. Vento suave num dia de calor. Vozes que falam uma com a outra. Carros com famílias lá dentro. Carros com pessoas sozinhas. Caminhos percorridos. Caminhos por percorrer. Onde vamos nós? Para onde?
Vou sentir falta deste mundo.
Há oito anos atras, ainda antes de a beijar, ela disse-me que não podia algum dia ficar comigo porque tinha sida. Que não era justo amar alguém para depois quem sabe estragar-lhe a vida, e ver essa pessoa desaparecer. A minha resposta a esse momento foi apenas esta... beijá-la. Não queria saber. Era algo com que podia viver e contornar. Só e apenas queria tratar dela... pois, ela, era o meu amor.
É o meu amor.
Ainda hoje, nos meus últimos momentos não me arrependo da decisão que tomei. Tratei dela, como sempre desejei, mas a doença acabou de cair sobre mim, e com a doença veio o ser chamado de morte que agora arranha a minha alma. Creio que me vou com um sorriso, mas, lamento saber que esta minha viagem parte-lhe o coração, e que ela se culpa por tudo que aconteceu.
Nada disto é culpa dela. Não estou em dor.
Olho para ela, e tenho a certeza, que depois deste dia ela irá tomar a sua própria vida, e isso eu não posso deixar acontecer. Quero que ela tenho um funeral católico num futuro. Mesmo que lhe peça com todas as minhas forças ela vai ser a casmurra que sempre foi e não me irá ouvir, ou ligar a algo que lhe peço. Prendo-me nela. Na sua mão sobre a minha perna. Não tenho muitas mais forças. Uso o peso que resta do meu corpo e encosto-me a ela. Aproximo a minha boca do seu ouvido e digo-lhe o que sempre desejei. Agarro o volante e mesmo que ela lute eu ganho esta batalha. Giro o volante e aponto o carro na faixa contrária.
Um carro contrário não se consegue desviar.
Irei sempre tratar dela.
Fim.
Texto por: Daniel Lopes
Imagem por: Pierre Devlin